“Não podemos falar de parto agora, pois só eu posso decidir depois”, “Vamos descobrir isso no final da gravidez”, “Não é você quem decide!”, “Doula é uma perfumaria, totalmente dispensável”. Foram frases que a professora e escritora Fernanda Baukat ouviu falar de alguns médicos durante sua primeira gravidez.
O ano era 2009 e, ao lado do marido, o quadrinista Jose Aguiarela viveria uma saga em busca de um profissional que a ouvisse e entendesse seu desejo de ter um parto normal e humanizado.
Naquela época, falar sobre o assunto no escritório parecia pecado ou moda. Felizmente, o cenário evoluiu, ainda que o Brasil continue sendo um dos recordistas de cesarianas do planeta – aqui, 57% dos partos ocorrem por via cirúrgica, sendo a média global de 21% e a recomendação da OMS de 15%.
Respeite o corpo e os desejos do mulher num período marcado por convulsões hormonais e transformações físicas e emocionais nem sempre é uma realidade. Conveniência médica, entraves aos planos de saúde, sobrecarga do SUS… Muito ainda precisa ser feito para acolher as mães brasileiras, suas dúvidas, desejos e angústias.
Acompanhar a história de Fernanda e José, entre visitas a obstetras, demandas de trabalho e sonhos e pesadelos todas as noites, é percorrer uma jornada única, mas também coletiva. Uma viagem que virou uma bela narrativa gráfica com o roteiro da mãe e os desenhos do pai em Embaixo da aguaque acaba de ser lançado pelo Nemo.
Embaixo da agua
Em outras palavras, o autor.
Anos depois da experiência relatada no livro, a impressão que se tem é que há mais consciência sobre a importância do parto normal e humanizado, inclusive no mundo médico. Qual é a sua opinião sobre isso? As mulheres ainda são reféns de um sistema que privilegia todos… menos elas?
Minhas experiências com o parto foram nos anos de 2010 e 2015, e já senti uma mudança entre um e outro, primeiro porque não estava mais revelando os segredos da gravidez e do parto que pareciam estar guardados a sete chaves, na época da minha primeira gravidez.
Pelo que vejo, a mudança existe, mas ainda é lenta, pois vejo muitas mulheres passando por cesarianas desnecessárias e outros procedimentos padronizados e inúteis no parto normal, seja por medo ou por falta de informação. Infelizmente ainda temos muitos profissionais que tiveram essa formação não humanizada e há um pouco de preconceito quando se fala em parto humanizado, como se estivéssemos falando não de um direito e sim de algum tipo de modismo.
Ainda bem que essa discussão foi para outras áreas, graças ao ativismo de mulheres, enfermeiras obstétricas e alguns médicos. Hoje há mais opções de profissionais formados em parto humanizado do que na época das minhas gestações, incluindo um modelo de coletivos que reúne médicos e obstetras, enfermeiras obstétricas e doulas, para trabalhar com uma equipe igualmente preparada para atender o parto e com o mesma linha de pensamento. Hoje também há mais opções de parto humanizado pelo SUS, mas ainda não parece próximo do que deveria ser. Mas é um começo.
O que você espera deixar como principal mensagem do livro para as mulheres, mães ou não, que acompanham sua jornada nessas páginas?
A primeira ideia é a da própria história. É o exercício de organizar a experiência e compartilhá-la. Isto é muito precioso e necessário. Cada história, mesmo sendo única, também dialoga com o coletivo. Minha experiência é única, mas quantas outras experiências de maternidade são semelhantes ou completamente diferentes e ainda assim nos identificamos com elas?
Colocar essas memórias em forma de narrativa gráfica significa também dialogar com diferentes públicos. Traga-os aos leitores – sim, deixe que mais homens e pais se envolvam neste processo! – na forma de histórias em quadrinhos foi estimular a conversa sobre esse tema em vários círculos.
Nosso objetivo – o meu ao roteirizar, que também foi (auto)ficcionalizar a nossa experiência e o do José, ao desenhar tão lindamente a nossa história – foi trazer à tona essas camadas: a discussão sobre o parto, o (des)respeito às escolhas sobre o próprio corpo e nossos desejos, representados pelos sonhos que permeiam a narrativa.
Uma história de vida é sempre única, um nascimento é sempre único: não deve ser tratado como apenas mais um acontecimento médico numa linha de montagem. É o início da história de uma pessoa, o rito de passagem de uma mulher que dá as boas-vindas ao seu bebê, e tem diversas nuances. Não é bidimensional, mas muito complexo, como o próprio ser humano.
Os desafios da maternidade começam logo no nascimento (ou mesmo antes dele)… Além das dificuldades que você expõe em Embaixo da aguaqual seria, na sua opinião, o lado mais desafiador de ser mãe?
Os desafios são vários: o primeiro é que não podemos mais focar em apenas uma coisa de cada vez, então obviamente não posso dizer que só existe mais um lado desafiador.
O desafio começa no dia a dia, sendo invisível porque é mãe. Vejo esse tratamento em hospitais, em lojas, como a barriga estava visível, qualquer adulto achava que tinha o direito de me chamar de “mãe”, antes mesmo do meu próprio filho começar a falar! É uma das sensações mais irritantes e desagradáveis, mas acontece o tempo todo, com todos nós. Ser chamada de mãe por esses adultos e nesses contextos, na minha opinião, é um desrespeito, pois a mulher, que é plural, acaba sendo reduzida a um único papel.
Os outros desafios da maternidade diária são constantemente calibrados à medida que os filhos crescem. E há muitos. Mas os principais, para mim, têm a ver com o cansaço físico e mental. Lembro que, até meus 3 anos de idade, meu filho mais velho parecia que meu cérebro “deu errado” e eu não conseguia me concentrar em nada por muito tempo. Eu também não estava preparado para isso. Os pensamentos nunca mais foram só meus.
Percebo que, ultimamente, tem havido muito debate sobre a “sobrecarga mental” das mães. Acho que essa sobrecarga gera um cansaço extremo, tanto corporal quanto mental. Começa durante a gravidez, prolonga-se com o recém-nascido e atravessa o período de extrema privação de sono, que pode durar muito tempo, devido aos imprevistos de cada doença…
A própria maternidade envolve educar, criar um novo ser no mundo, o que é um desafio por si só, mas também incrível. Talvez, se a sociedade como um todo estivesse verdadeiramente envolvida neste processo, as mães não ficariam tão sobrecarregadas.
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