Um nova substância provou ser eficaz como analgésico e anti-inflamatórioe também apresentou resultados promissores no tratamento de gripe, esclerose múltipla, glaucoma, endometriose, acidente vascular cerebral, Parkinson e diversas outras doenças.
Sua ação pode ser comparada à de canabinóides — compostos químicos extraídos da planta Cannabis, a maconha —, com a vantagem de serem vendidos sem receita médica em farmácias e drogarias.
Apesar de todos esses possíveis usos, a maioria dos médicos desconhece a substância, e seu potencial passa despercebido, mesmo entre quem conhece e prescreve o canabidiol (CBD), substância do Cannabis sativa que atua no sistema nervoso central e cujo uso medicinal tem sido amplamente discutido atualmente.
Esta substância promissora é palmitoiletanolamida (PEA), Descoberto há mais de 60 anos como nutriente biologicamente ativo presente na lecitina de soja (suplemento extraído do óleo dos grãos da planta), na gema do ovo e na farinha de amendoim.
A PEA é sintetizada no corpo em vários tipos de células, incluindo células do sistema imunológico, neurônios e células gliais (um conjunto de células do sistema nervoso central que sustentam e nutrem os neurônios), especialmente em resposta a estímulos como inflamação ou lesão.
É um “canabimimético”: substância que imita os efeitos dos canabinoides endógenos (produzidos pelo próprio organismo) e da planta Cannabis no organismo, interagindo com os mesmos receptores e vias metabólicas, sem ser derivado da planta Cannabis.
A PEA é um dos vários canabimiméticos, mas seu vasto potencial terapêutico, especialmente nas áreas de dor e inflamação, faz com que a substância mereça atenção especial por parte dos interessados em avanços nas pesquisas sobre a cannabis medicinal.
ERVILHA e gema de ovo
Curiosamente, além de ser encontrada endogenamente, a PEA também é produzida na gema do ovo e em algumas outras fontes naturais, tornando-a relativamente fácil de obter em concentrações mais elevadas.
A palmitoiletanolamida foi identificada como o componente ativo que bloqueou a anafilaxia articular passiva – que é uma reação alérgica grave – em porquinhos-da-índia. Mesmo antes disso, o médico americano Alvin F. Coburn havia descrito os benefícios clínicos de alimentar crianças pobres expostas à bactéria estreptococo com gemas de ovo secas para prevenir a febre reumática. Esta observação levou à descoberta da PEA uma década e meia depois.
A PEA foi finalmente isolada em 1957. Na década de 1960, a SPOFA United Pharmaceuticals lançou a PEA no mercado sob o nome Impulsin, como tratamento para gripe e resfriado comum.
Vários estudos da época demonstraram que a PEA reduziu os sintomas virais e a gripe clínica. Posteriormente, descobriu-se que a PEA reduzia a sorologia viral do vírus influenza. Este benefício tem sido amplamente ignorado na literatura recente, que agora se concentra principalmente nos efeitos da PEA como analgésico e modulador de distúrbios neurológicos.
Estudos pré-clínicos demonstram que a suplementação de PEA pode oferecer efeitos antinociceptivos (redução da dor), antiinflamatórios e neuroprotetores, além de melhorar sintomas associados a transtornos depressivos, entre outros. Aqui estão algumas das aplicações mais promissoras do PEA.
Redução da dor
Os benefícios da PEA para a saúde foram estudados em diversas áreas. Em uma meta-análise de estudos clínicos em humanos, os pacientes foram avaliados quanto à intensidade da dor, com o objetivo de avaliar a eficácia e segurança da PEA na redução da intensidade da dor em pacientes com dor crônica e neuropática.
A substância foi geralmente bem tolerada e não foram observados eventos adversos graves, não graves ou suspeitos associados à PEA (em doses de até 1.200 mg/dia durante 365 dias). A meta-análise incluiu 12 estudos clínicos, dos quais três foram duplo-cegos e controlados por placebo, dois foram controlados por terapias padrão e sete foram estudos abertos. A busca incluiu ensaios entre 2010 e 2014 e foi realizada em bases de dados como PubMed, Google Scholar e Cochrane.
Os resultados indicam que a PEA promove redução progressiva e significativa da intensidade da dor em comparação aos grupos controle. Os pacientes tratados com PEA obtiveram alívio da dor mais rápido e duradouro e nenhum evento adverso (grave ou leve) foi registrado em nenhum dos 12 estudos analisados. A PEA foi considerada bem tolerada, sem indução de tolerância ao longo do tratamento, mesmo em doses de até 1.200 mg/dia por 60 dias.
Os estudos incluídos na meta-análise mostraram resultados favoráveis com o uso da PEA no tratamento da dor crônica e inflamação em diferentes condições, incluindo ciática, fibromialgia, dor lombar crônica, neuropatia induzida por quimioterapia, síndrome do túnel do carpo, dor inflamatória articular articulação temporomandibular (ATM) e osteoartrite. A PEA também demonstrou ser segura, com efeitos adversos mínimos relatados e alta tolerabilidade, mesmo em pacientes com outras condições crônicas.
Efeitos neuroprotetores
Os efeitos neuroprotetores da palmitoiletanolamida (PEA) têm sido investigados em diversas condições neurológicas, incluindo doenças progressivas e danos neurológicos agudos.
Num estudo com pacientes com Doença de Parkinson, os resultados mostraram uma redução significativa e progressiva dos sintomas motores e não motores, o que sugere que a PEA pode ter um impacto importante na modulação da progressão dos sintomas de Parkinson, oferecendo alívio adicional para a doença de Parkinson. pacientes.
Em pacientes estabilizados após acidente vascular cerebral, a combinação de PEA com Texafirina de Lutécio (LutT) registrou resultados notáveis, mostrando melhorias no estado neurológico geral dos pacientes, habilidades cognitivas, grau de espasticidade e dor. Além disso, a independência nas atividades diárias também melhorou significativamente, reforçando o potencial da PEA como terapia adjuvante nos processos de reabilitação neurológica.
Um estudo com pacientes com esclerose múltipla – uma condição crônica caracterizada por episódios recorrentes de inflamação no sistema nervoso central – mostrou que a PEA foi capaz de reduzir significativamente os sintomas de dor após três meses. Esses achados sugerem que a substância pode não apenas reduzir a inflamação, mas também aliviar a dor associada às crises de esclerose múltipla, melhorando a qualidade de vida desses pacientes.
Em resumo, a PEA demonstrou benefícios neuroprotetores consistentes em diversas condições neurológicas. Os resultados indicam melhora significativa nos sintomas motores e cognitivos, além de benefícios na dor e na funcionalidade dos pacientes.
Outros potenciais da PEA
Como se isso não bastasse, existem também dois outros efeitos muito interessantes dignos de consideração: estudos sobre glaucoma e hipertensão ocular descobriram que a PEA reduziu significativamente a pressão intraocular e melhorou significativamente as respostas fisiológicas em comparação com o placebo.
Outra abordagem interessante conclui que a PEA pode ser utilizada como medicamento auxiliar no tratamento da gripe (adjuvante antigripal). Estudos relatam que os indivíduos que receberam PEA tiveram significativamente menos episódios de febre, dor de cabeça e dor de garganta em comparação com o placebo. A PEA também reduziu o número total de faltas por doença e a taxa de incidência.
Recentemente, tivemos mais um exemplo de ação interessante, de interesse atual: redução de marcadores inflamatórios na Covid-19. E, como se não bastasse, temos, para finalizar, um artigo mostrando o efeito da PEA na insônia, com benefícios qualitativos e quantitativos do sono.
A PEA é tão eficaz, e em situações muito diversas, porque consegue restabelecer a homeostase (processo pelo qual o organismo mantém o seu equilíbrio interno), de forma semelhante aos mecanismos de ação dos endocanabinóides. Em situações patológicas crónicas, os níveis endógenos podem ser insuficientes para manter a homeostase, o que torna a suplementação exógena de PEA uma intervenção terapêutica promissora.
Vindo da alimentação, a PEA tem efeitos terapêuticos muito interessantes. Ainda há necessidade de mais ensaios clínicos, mas como a substância é considerada um nutracêutico (compostos benéficos à saúde encontrados naturalmente nos alimentos) e não um medicamento pela FDA (agência reguladora dos EUA), é improvável que haja financiamento do empresas farmacêuticas para subsidiar o registro de um medicamento.
Podemos considerá-lo uma espécie de “nutracêutico canabimimético”, que inaugura esta classe de substâncias, com efeitos semelhantes aos dos canabinóides endógenos e com vasto potencial terapêutico.
* Fabricio Pamplona é doutor em Farmacologia e pesquisador da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)
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