Há 120 anos, uma lei federal tornou o vacinação obrigatória em todo o país. E esta foi a gota d’água para a Revolta da Vacina, confusão que marcou a história da então jovem República.
Assinado em 31 de outubro de 1904 pelo presidente Francisco de Paula Rodrigues Alves (1848-1919), o decreto determinava a obrigatoriedade, em todo o território nacional, da “vacinação e revacinação contra a varíola”.
Segundo o regulamento, a imunização seria “praticada até ao sexto mês de idade, exceto em casos comprovados de doença”, em que poderia “ser realizada posteriormente”. E a segunda dose foi agendada “sete anos após a vacinação” e foi “repetida a cada sete anos”.
“Serão vacinadas as pessoas com mais de seis meses de idade, salvo se comprovarem claramente que foram submetidas a esta operação com benefício nos últimos seis anos”, determina ainda a norma.
“O Brasil vivia o retorno da varíola, considerada erradicada em 1896”, explica o historiador João Manuel Casquinha Malaia Santos, professor da Universidade Federal de Santa Maria, à BBC News Brasil.
“Além do crescimento do número de casos de varíola, o Rio de Janeiro, então capital federal, passava por inúmeras reformas urbanas, principalmente na região central. O símbolo maior dessa reforma foi a inauguração da Avenida Rio Branco. a lei de vacinação obrigatória foi dentro de um contexto de reformas urbanas e sanitárias.”
No dia 9 de novembro, o jornal A Notícia publicou um projeto de regulamento da nova lei. A ideia seria que o comprovante de vacinação se tornasse necessário para inscrição em novos empregos, matrícula em escolas, viagens, hospedagem em hotéis e até casamentos. Foram aplicadas multas a quem não cumprisse o procedimento.
Revolta e favelização
Foi o gatilho para uma revolta popular. Ao longo de uma semana, conflitos e manifestações tomaram conta do centro do Rio, então capital da República. Um grupo de soldados, com o apoio de civis descontentes, chegou a flertar com um golpe de Estado, na madrugada do dia 14 para o dia 15.
A confusão, no entanto, restringiu-se capital federal.
“A Revolta foi um episódio restrito ao Rio de Janeiro e surgiu num contexto de disputas pelo poder político, reforma urbana no então Distrito Federal, lutas sindicais por melhores salários, fome e reação ao caráter autoritário e intervencionista das medidas sanitárias determinadas” , explica a historiadora Christiane Maria Cruz de Souza, doutora em História das Ciências da Saúde, à BBC News Brasil.
“No resto do país pode ter havido resistência individual à vacina e à vacinação, motivada por questões ideológicas, médico-científicas, religiosas ou mesmo desconfiança em relação aos métodos, eficácia e possíveis efeitos secundários da vacina e da vacinação”. , ela acrescenta. “Mas não há registros de movimentos semelhantes ao que aconteceu no Rio”.
Como explica à BBC News Brasil a farmacêutica e historiadora Tania Dias Fernandes, pesquisadora da Casa de Oswaldo Cruz, da Fundação Oswaldo Cruz, essa lei de 1904 não foi a primeira tentativa de “implementar a vacinação obrigatória no Brasil”. Iniciativas semelhantes vinham ocorrendo desde o pós-Independência, sem sucesso.
“Esse [a de 1904] está em um contexto muito específico de mudanças na cidade do Rio de Janeiro e de propostas de reorganização dos serviços de saúde, dos serviços sociais e da própria cidade, com a requalificação dos grandes centros do centro, onde havia uma enorme gama de populares habitação”, explica. Além disso, a pesquisadora destaca que entre 1903 e 1904 o Rio sofreu um surto de varíola muito intenso — o que aumentou a pressão para que o governo fizesse alguma coisa.
Fernandes sublinha ainda que a legislação “trouxe em si uma vertente coerciva e punitiva muito violenta”.
“O movimento paralisou a cidade do Rio de Janeiro entre 10 e 16 de novembro de 1904”, diz Souza. Depois o governo declarou estado de sítio e suspendeu a vacinação obrigatória. A ideia era abafar o fervor popular. As forças policiais foram responsáveis pela repressão. O balanço oficial da revolta foi de 30 mortos, 110 feridos, 945 presos no Presídio Naval da Ilha das Cobras e 461 deportados para o Acre. “O governo repreendeu fortemente a população que se revoltou”, diz Santos.
Mas a revolta não foi só por causa da vacina. Já existia um contexto de insatisfação popular na capital do Brasil naqueles anos —pesquisadores costumam dizer que a vacinação obrigatória acabou sendo o pretexto que faltava para que o descontentamento se transformasse em tumultos.
No início do século XX, o Rio de Janeiro passava por profundas mudanças urbanísticas e sanitárias, lideradas pelo então prefeito Francisco Pereira Passos (1836-1913), com aprovação da Presidência da República.
A ideia era modernizar a capital do país, preparando-a para o século XX e expurgando do seu centro as marcas do colonialismo. As ruas foram alargadas e os cortiços que dominavam a região central foram destruídos.
Vale ressaltar que esses cortiços não surgiram por acaso. De 1890 a 1906, a população do Rio saltou de pouco mais de 500 mil para 800 mil habitantes, com o início da industrialização e o influxo de ex-escravos e imigrantes europeus. Na ausência de habitação social, os antigos casarões do centro acabaram por ser redivididos pelos seus proprietários, sendo cada cubículo destinado a uma família. Eram pensões ou cortiços populares.
Com a destruição destes espaços, a população mais pobre, composta em grande parte por ex-escravos e seus descendentes, viu-se expulsa do centro da cidade — num fenómeno sócio-urbano que hoje se chama gentrificação. Acabaram se instalando nos morros, formando as primeiras favelas do Rio.
Nesse processo de modernização, o já renomado médico Oswaldo Cruz (1872-1917) foi nomeado Diretor Geral de Saúde Pública. Ele teve grandes problemas de saúde para enfrentar. E precisava controlar epidemias, principalmente febre amarela, peste bubônica e varíola.
O médico tomou posse com carta branca para conduzir suas ações. Sua divisão tinha autoridade para invadir, fiscalizar, fiscalizar e demolir casas e edifícios. Foi uma verdadeira guerra contra as doenças.
Para controlar a febre amarela, ele concentrou seus esforços na eliminação do mosquito transmissor e no isolamento dos pacientes. Contra a peste bubônica, promoveu uma intensa campanha de controle de ratos. “A imprensa do período começou a atacar duramente Oswaldo Cruz. Começaram a aparecer notícias na imprensa informando que agentes invadiam casas em busca de ratos, para limpar água parada, ou jogavam fumaça de enxofre nas casas para matar mosquitos”, diz o historiador Santos. .
Para acabar com a varíola, a forma eficiente foi a vacinação em massa.
“Um dos motivos que levou ao descontentamento popular foi o fato de as medidas de saúde pública não serem bem informadas, principalmente para os grupos mais pobres. A população não entendeu nem gostou das medidas. E Oswaldo Cruz começou a cair em desgraça”, avalia Santos.
Naquela época, não havia campanhas massivas de vacinação. “O que houve foram poucas iniciativas em algumas cidades para vacinar pessoas em horários restritos, geralmente nas sedes da administração, hoje prefeituras”, explica o historiador Santos. “Mas estavam em poucos locais e em horários muito restritos. Ainda havia alguns médicos, alguns deles ligados a postos de higiene, que administravam vacinas a quem quisesse, nas suas próprias casas”.
Foi este contexto que permitiu, após acesos debates no parlamento, a criação do decreto presidencial. Os pobres, já incomodados com as mudanças, revoltaram-se. “A população começou então a se concentrar no centro da cidade. E os atos começaram: acenderam lâmpadas, montaram barricadas, bondes foram tombados e incendiados”, diz o historiador Santos.
Mas se a revolta terminasse com a suspensão da vacinação obrigatória, a conta veio. Em 1908, uma epidemia de varíola matou quase 6.400 pessoas no Rio.
O caso de Cipriana
Santos coloca a Revolta da Vacina como “uma das maiores revoltas urbanas que o Brasil já conheceu”. E lembre-se que havia um clima de polarização, com a oposição ao governo a fazer campanha contra isso. A imprensa também estava dividida. Por um lado, a revista O Malho defendia o progresso científico. Por outro lado, Tagarela defendeu que é preciso respeitar “o direito de cada pessoa decidir se quer ou não ser vacinado”, explica Santos.
Houve um caso que repercutiu bastante na imprensa e, segundo o historiador, pode ser entendido como “um pouco mais de lenha na fogueira”. Uma mulher negra, chamada Cypriana Leocádia, morreu e o legista declarou que a causa da morte foi “septicemia relacionada à vacina”. “Isso foi suficiente para o deputado [Alexandre José] Barbosa Lima [(1862-1931)]ligado ao grupo positivista [oposição ao governo de então] leve esse relatório ao Congresso como prova: a vacina mata”, diz Santos.
“O caso da ‘preta Cypriana’, como ficou conhecido na imprensa, começou a ser utilizado até para acusações de que o governo queria matar a população pobre”, afirma o historiador. “Os jornais começaram a noticiar outras ‘vítimas de medidas de defesa sanitária’”.
Também se espalhou a notícia falsa de que os agentes de saúde queriam aproveitar a vacinação para ver os braços e as costas das meninas. “O [revista] Tagarela publicou diversas charges zombando dessa situação, o que inflamou ainda mais os ânimos”, relata Santos.
“A mídia contribuiu para o acirramento dos ânimos nesse período, com matérias contra a lei e charges ridicularizando Oswaldo Cruz e sugerindo efeitos colaterais desastrosos”, comenta o historiador Souza.
E varíola?
“A legislação de 1904 acabou não sendo cumprida. Ficou como uma carta colocada em cima”, comenta Fernandes. Ou seja: depois de acalmar os ânimos, a lei continuou em vigor, mas ninguém se preocupou em fiscalizar a sua aplicação.
Fernandes explica que a varíola foi controlada mundialmente a partir da década de 1940, graças aos programas de vacinação. Naquela época, o Brasil fazia parte de um pequeno grupo de países onde a doença continuava sendo registrada.
Houve pressão internacional. No início da década de 1960, o país criou uma campanha nacional contra a varíola, reforçada em 1966 com a campanha para erradicar a doença.
Segundo o pesquisador Fernandes, um injetor de pressão começou a ser usado para melhorar a velocidade da imunização e, nessas campanhas em massa, foram vacinadas até mil pessoas por hora.
O último caso brasileiro de varíola ocorreu em 1971. Desde 1973, o país é certificado pela Organização Mundial da Saúde pela erradicação da doença. Em 1980, a varíola foi considerada erradicada de todo o planeta.
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