“É melhor prevenir do que remediar.” O ditado, presente em diversas culturas, reflete a sabedoria popular que valoriza antecipação de problemaspara evitar a necessidade de lidar com suas consequências. Na área da saúde, essa máxima tem norteado as políticas públicas, orientado as práticas clínicas e moldado a percepção da sociedade sobre o bem-estar e a qualidade de vida. A ideia é simples: se podemos prevenir a ocorrência de uma doença, é preferível tratá-la depois que ela aparece. Além de potencialmente salvar vidas, o prevenção tende a ser mais econômico e menos invasivo que os tratamentos curativos.
Contudo, a aplicação prática do conceito não é tão linear. A saúde humana é um campo complexo, influenciado por fatores biológicos, psicológicos, sociais e ambientais. As intervenções que visam prevenir doenças podem, paradoxalmente, causar danos se não forem bem fundamentadas. É aqui que a distinção entre os diferentes níveis de prevenção se torna crucial, tal como o reconhecimento dos riscos associados a intervenções de saúde excessivas.
Níveis de prevenção
Embora coloquialmente associemos “prevenção” a tudo o que podemos fazer para evitar uma doença, em epidemiologia este conceito é muito mais amplo. Por exemplo, tomar medicamentos pode ser uma forma de prevenir o agravamento de uma doença. Da mesma forma, a reabilitação busca prevenir a piora da qualidade de vida após uma lesão grave. Ou seja, a ideia de prevenir permanece essencialmente a mesma, o que muda é o nível em que ocorrem as ações preventivas: primário, secundário e terciário.
Prevenção Primária: Este é o primeiro nível e visa prevenir a ocorrência da doença. Provavelmente é isso que as pessoas imaginam quando ouvem o ditado que abre este texto. Envolve intervenções realizadas antes do aparecimento de qualquer sinal ou sintoma, atuando sobre os fatores de risco. Exemplos clássicos incluem a vacinação, que protege contra doenças infecciosas, e campanhas para promover hábitos de vida saudáveis, como alimentação equilibrada e exercício físico regular. A prevenção primária é essencial para reduzir a incidência (novos casos) de doenças na população.
Prevenção Secundária: Focada na detecção precoce de doenças, a prevenção secundária visa identificar alterações em fases iniciais, quando as chances de cura ou controle são maiores. Isto é feito através de testes de rastreio e diagnóstico precoce, como colonoscopias para cancro do cólon ou testes de glicemia para diabetes. Ao diagnosticar uma doença em seus estágios iniciais, é possível iniciar o tratamento mais precocemente, evitando complicações e melhorando o prognóstico.
Prevenção Terciária: Esse nível ocorre quando a doença já está instalada e busca minimizar suas consequências e melhorar a qualidade de vida dos pacientes. Envolve medidas de reabilitação física e psicológica, acompanhamento de doenças crónicas e controlo de sintomas. Por exemplo, programas de reabilitação cardíaca após ataque cardíaco, fisioterapia para pacientes com sequelas neurológicas e apoio psicossocial para pessoas que vivem com VIH/SIDA. A prevenção terciária é essencial para reduzir a morbilidade associada às doenças e promover a reinserção social dos indivíduos afetados.
Prevenção Quaternária?
Apesar dos benefícios das medidas preventivas, é crucial reconhecer que as intervenções de saúde não são isentas de riscos. A palavra iatrogênica refere-se a efeitos adversos não intencionais, causados por ações ou omissões dos profissionais de saúde. Isto inclui tudo, desde reações adversas a medicamentos e complicações cirúrgicas até diagnósticos incorretos e tratamentos desnecessários.
Por exemplo, a realização de exames de imagem complexos, sem indicação precisa, pode levar à descoberta de achados incidentais que, embora benignos, podem gerar ansiedade no paciente, levar a mais exames e até mesmo a intervenções invasivas desnecessárias, como uma biópsia. Além disso, o uso indiscriminado de antibióticos para prevenir ou tratar infecções, muitas das quais de origem viral, contribui para o fenómeno da resistência bacteriana, um problema global de saúde pública.
A pressão para agir, muitas vezes motivada pelo desejo de ajudar ou pelas expectativas dos pacientes, pode levar os profissionais de saúde a realizarem intervenções que não trazem benefícios e que podem causar danos. Este fenómeno pode ser parcialmente explicado pelo enviesamento da comissão, uma tendência cognitiva em que a acção é preferida à inacção, mesmo quando esta última seria a opção mais segura.
Os profissionais de saúde são frequentemente treinados para agir. Afinal, não é isso que esperamos deles? Mas será que intervir é sempre a melhor opção? Os pacientes, por sua vez, podem interpretar a falta de ação como falta de interesse ou incompetência do profissional. Essa dinâmica alimenta uma cultura onde exames, procedimentos e receitas são realizados não necessariamente porque são a melhor opção, mas porque representam uma ação tangível. Essa preferência pela ação pode levar ao sobrediagnóstico e ao sobretratamento, fenômenos em que condições sem relevância clínica significativa são diagnosticadas e tratadas, expondo os pacientes a riscos desnecessários.
Por exemplo: a detecção de pequenos nódulos tireoidianos indolentes pode levar a cirurgias invasivas, com riscos associados, sem qualquer benefício comprovado para o paciente. A prescrição de medicamentos para controlar níveis levemente elevados de colesterol em indivíduos sem outros fatores de risco cardiovascular pode não ser necessária e causar efeitos colaterais.
Em resposta a estes desafios surgiu o conceito de prevenção quaternária, que propõe uma reflexão crítica sobre as intervenções médicas. O seu objetivo é identificar indivíduos em risco de tratamento excessivo e protegê-los de intervenções médicas desnecessárias ou prejudiciais. Este nível de prevenção reconhece que, em alguns casos, o melhor curso de ação é não intervir.
Isto não significa negligência ou abandono, mas sim uma decisão informada e baseada nas melhores evidências científicas disponíveis. A prevenção quaternária nos lembra o princípio hipocrático Primum Non Nocere (“primeiro, não faça mal”) – ou, como provavelmente diriam as nossas mães: “aqueles que não atrapalham são muito ajudados” – e convidam-nos a considerar cuidadosamente os riscos e benefícios de cada intervenção.
A indústria excedente
O mercado de saúde tem aproveitado essa onda de intervenções excessivas. Quem nunca recebeu uma proposta para um check-up completo, mesmo sem precisar? E aquelas vitaminas caras que nos empurram na farmácia, sem nem saber se temos deficiência? Sem falar nas terapias “milagrosas” – que vão do “soro de beleza” ao “enema de café” – que aparecem o tempo todo na internet. Estes são exemplos de como a prevenção pode ser distorcida em favor de interesses comerciais. Esta abordagem não só sobrecarrega os sistemas de saúde e os orçamentos pessoais, mas também contribui para a ansiedade e a percepção de que estamos constantemente doentes ou em risco. Paradoxalmente, muitas destas intervenções colocam em risco pacientes que anteriormente estavam bem.
Além disso, embora haja um excesso de intervenções desnecessárias, há também uma desconfiança crescente em medidas preventivas comprovadamente eficazes, como as vacinas. Os movimentos antivacinação alimentam-se da desinformação e do medo, levando à recusa de imunizações essenciais para a saúde pública. Essa desconfiança é ampliada quando a população observa contradições no sistema de saúde, como a promoção de tratamentos sem evidências sólidas, ao mesmo tempo em que é necessária a adesão a políticas preventivas. A falta de comunicação clara e transparente sobre os riscos e benefícios das intervenções alimenta a negação e a hesitação.
Para reverter esse cenário, é fundamental que os profissionais de saúde adotem uma postura crítica e ética em sua prática. Isso envolve:
- Basear as decisões clínicas na melhor evidência científica disponível, evitando a influência de interesses comerciais ou modismos.
- Comunicar de forma clara e empática com os pacientes, explicando os riscos e benefícios de cada intervenção e respeitando a sua autonomia.
- Reconhecer e combater o preconceito da comissão, estando disposto a considerar que, em alguns casos, a melhor opção é não intervir.
- Promover a educação em saúde, educando os pacientes sobre a importância da prevenção quaternária e os riscos do sobrediagnóstico e do sobretratamento.
Além disso, é essencial que as instituições de saúde e os sistemas reguladores estabeleçam orientações claras e restrinjam práticas que promovam intervenções desnecessárias. As políticas de saúde devem priorizar a qualidade em detrimento da quantidade, incentivando a prática baseada em evidências e focada no bem-estar do paciente.
Equilíbrio e responsabilidade
A prevenção quaternária desafia-nos a repensar a nossa abordagem à saúde, procurando um equilíbrio entre acção e inacção, intervenção e observação. Num mundo onde a tecnologia médica avança tão rapidamente como as fraudes e a desinformação sobre saúde, e em que as opções de intervenção se multiplicam aos olhos dos potenciais pacientes, é tentador acreditar que há sempre algo a fazer (mesmo quando estamos bem).
Porém, em muitos casos, menos é mais. A verdadeira sabedoria reside em saber quando agir e quando é melhor esperar. Só assim podemos garantir que o ditado “é melhor prevenir do que remediar” realmente faz sentido e beneficia a todos, sem cair nos perigos do excesso.
*André Bacchi é professor de farmacologia da Universidade Federal de Rondonópolis (MT), divulgador científico e autor do livro Afinal, o que é Ciência?… E o que não é (Editor de Contexto). Este texto foi publicado originalmente em Revista Questão de Ciência
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