No mesmo período em que os olhos de todo o Brasil (e do mundo) se voltaram para catástrofe com as chuvas no Rio Grande do Sul e as terríveis repercussões das suas causas ambientais, sociais e económicas, a revista inglesa A Lancetamais importante das ciências médicas, lançou o relatório sobre mudanças climáticas e seus impactos na saúde. O título da publicação reflete a urgência diante dos eventos climáticos extremos, supostamente naturais, já sofridos por pessoas em todo o mundo: eventos sem precedentes exigem ações sem precedentes.
O documento aponta que as alterações climáticas devido às emissões de CO2 são reais e comprometem – e levam embora! – a vida e o bem-estar das pessoas. Feita com a contribuição de 69 pesquisadores e especialistas de instituições renomadas, a publicação explica que foram registradas temperaturas recordes em 2023 e os impactos à saúde causam danos, principalmente, à população vulnerável.
Para se ter uma ideia do cenário trazido por LancetaA Europa já tem um clima propício à proliferação de vectores de doenças como dengue, chikungunya, zika — patologias ligadas às temperaturas tropicais. Espanha, França e Itália são alguns dos países que apresentaram mais casos destas doenças em 2022 do que em 2020 e 2021 juntos.
O relatório salienta, por exemplo, que o sul da Europa tende a ser mais afetado por doenças relacionadas com o calor, incêndios florestais, insegurança alimentar, seca, doenças transmitidas por mosquitos e leishmaniose. Em contraste, o norte da Europa é o mais afectado pela bactéria Vibrioque causa doenças como a cólera, bem como carrapatos, que podem transmitir a doença de Lyme.
Os dados também mostraram que os impactos nocivos do aquecimento global afectam o género, a classe e os grupos minoritários. A mortalidade relacionada com o calor, por exemplo, foi duas vezes mais elevada nas mulheres do que nos homens. As famílias de baixos rendimentos que vivem em regiões mais afetadas pelos acontecimentos climáticos tinham uma probabilidade substancialmente maior de sofrer de insegurança alimentar e de exposição ao fumo devido a incêndios florestais.
O resultado do trabalho é um panorama imperativo sobre as consequências das políticas ambientais negligenciadas por governos, empresas, mídia e população, além de convocar a sociedade a agir rapidamente, agora. E a velocidade de proliferação é proporcional ao aumento do calor: dadas as temperaturas recordes do planeta em 2023, os cientistas acreditam que o temido aumento de 1,5°C no clima global está muito mais próximo de acontecer. “Chegou a hora de tomar medidas sem precedentes para limitar estes impactos negativos na saúde na Europa e em todo o mundo.
mundo”, diz Rachel Lowe, membro do conselho da Lancet Countdown na Europa.
A crise climática e a América Latina
Apesar de estar centrado na Europa, o estudo da Lanceta está em linha com o relatório da Organização Meteorológica Mundial (OMM) sobre o clima nos países das Caraíbas e da América Latina. Depois de um 2023 de calor recorde, a fome e as doenças estão a espalhar-se por todo o continente americano, resultando em inundações em algumas regiões e secas severas noutras.
O relatório salienta que, nos últimos 12 meses, o A região Sul do Brasil foi atingida por cinco ciclones extratropicais – consequência de El Nino. Foi esse fenômeno, aliado a uma massa de ar quente na região central do país que bloqueia a frente fria, o responsável pelas chuvas incessantes que provocaram as terríveis enchentes no Rio Grande do Sul no início de maio.
E as ações globais para proteger os cidadãos são lentas. Seguindo a atual trajetória de iniciativas, a neutralidade carbónica só será alcançada em 2100. E alguns indicadores importantes estão a piorar: a utilização de carvão, por exemplo, aumentou para 13% do fornecimento total de energia da Europa em 2021, em comparação com 12% em 2020.
Dado este contexto, o espera-se que a saúde global sofra um sério impacto. Além de uma mudança no padrão e no perfil das doenças infecciosas, que tende a aumentar o surgimento de pandemias como a Covid-19, as consequências serão maiores nas populações vulneráveis, incluindo a saúde materno-infantil.
O Banco Mundial também estima que 21 milhões de pessoas morrerão até 2050 devido a condições meteorológicas extremas, diarreia, atraso no crescimento ou dengue. A previsão é que os sistemas de saúde fiquem ainda mais sobrecarregados e tenham dificuldade em responder a catástrofes sem perda de qualidade ou sustentabilidade.
Assim como o compromisso político e empresarial evoluiu mais lentamente do que o esperado na Europa, nos países em desenvolvimento, como o Brasil, a questão só recentemente começou a entrar na agenda. Com a catástrofe no Rio Grande do Sul, é urgente que os formuladores de políticas públicas entrem no debate, e realizem essa discussão de forma ampla, com a inclusão da saúde populacional no combate às crises climáticas. É claro que a questão é complexa, com impacto no PIB e em grandes projetos de infraestruturas. Mas a saúde pública não pode ser excluída dos temas prioritários.
*Leonardo Vedolin é diretor médico geral e cuidados integrados da Dasa
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