Alguns temas são tão delicados e rodeados de tabus culturais que tendemos a evitá-los, até que a realidade nos obrigue a enfrentá-los. A eutanásia é uma delas. Quer seja chamada de “morte assistida por médico”, “suicídio assistido” ou outro termo, a prática envolve profundos dilemas éticos e desafia as nossas concepções de autonomia e dignidade no final da vida. Não existe uma definição única e universalmente aceite de eutanásia ou morte assistida.
Costuma-se dizer que na eutanásia o médico administra o medicamento, enquanto na morte assistida o próprio paciente o faz. Na morte assistida existe um obstáculo para pacientes com limitações físicas graves, como tetraplégicos ou portadores de doenças neurológicas, que ficariam excluídos do procedimento por não conseguirem tomar eles próprios os medicamentos. No entanto, o cerne da questão não é tanto quem o gere, mas sim o facto de estarmos confrontados com o desejo explícito de acabar com a nossa própria vida em situações de extremo sofrimento. E é precisamente esta realidade que nos obriga a enfrentar os nossos próprios medos e preconceitos.
No Brasil, o tema ganhou destaque recentemente com o caso da poeta e filósofo Antônio Cíceroque optaram pela morte assistida na Suíça. Sua decisão abalou o público e trouxe à tona um debate que há muito evitávamos enfrentar. Diagnosticado com Alzheimer em 2023, Cícero decidiu que preferia morrer a perder completamente a capacidade cognitiva, cenário inevitável em estágios avançados da doença. A sua decisão não foi impulsiva; Ele se preparou meticulosamente com o apoio do marido para o momento, informando apenas aos amigos mais próximos e familiares um dia antes de partir.
A sua carta de despedida, publicada na imprensa, foi directa e comovente, uma rara demonstração pública de como o fim da vida pode ser visto não apenas como uma escolha de desespero, mas como um acto de controlo e dignidade face ao sofrimento. A história de Cícero ecoa outras histórias ao redor do mundo, lembrando o caso do Dr. Jack Kevorkian, “Dr. Morte”, que trouxe o debate sobre a eutanásia para a esfera pública na década de 1990.
Kevorkian, um patologista americano, ajudou centenas de pacientes a morrer, muitas vezes filmando os procedimentos, para forçar o debate ético e legal sobre o direito ao suicídio assistido. Ele não deixou sucessor direto, mas seu trabalho abriu caminho para que países do mundo criassem ou ampliassem legislação sobre o tema. No Brasil, eutanásia e morte assistida são consideradas crimes. A Constituição de 1988 garante o direito inviolável à vida, o que é interpretado como um obstáculo significativo a qualquer movimento em direção à legalização.
Entretanto, o Conselho Federal de Medicina permite ortotanásia — a suspensão de tratamentos que apenas prolongam o sofrimento dos pacientes terminais. Isto demonstra que há uma pequena abertura para respeitar os desejos dos pacientes, mas ainda longe de oferecer a autonomia que vemos em outros países. Em contraste, países como a Bélgica, os Países Baixos, a Suíça, a Austrália, a Suíça e o Canadá legalizaram e regulamentaram amplamente programas de eutanásia/morte assistida.
No Canadá, o programa MAID (Medical Assistance in Dying) é abrangente, embora as pessoas com transtornos mentais só sejam elegíveis se também apresentarem uma condição física “grave e irremediável”. Para se ter uma ideia da abrangência do programa, em 2022, 13.241 pessoas morreram usando MAID, representando mais de 4% das mortes no país. Na Austrália, a eutanásia é legal na maioria dos estados do país para adultos com doenças incuráveis, progressivas e terminais.
Desde a década de 1940, a Suíça autoriza o auxílio ao suicídio e é um dos poucos países que permite o acesso de estrangeiros ao procedimento. Contudo, a legislação suíça exige que apenas o próprio paciente administre o medicamento, excluindo qualquer intervenção direta de terceiros. Nos Países Baixos e na Bélgica, mesmo os pacientes com perturbações mentais graves que não melhoraram com múltiplos tratamentos podem qualificar-se para a morte assistida. Na América do Sul, o Equador e a Colômbia descriminalizaram a eutanásia.
Nos Estados Unidos, apenas alguns estados, como Oregon, Califórnia e Nova Jersey, permitem a prática, e sempre com restrições rigorosas. Em geral, o paciente deve sofrer de doença física terminal, com expectativa de vida não superior a seis meses e atestada por mais de um médico.
Helen Taler, irmã do antigo presidente da Câmara de Nova Iorque, Ed Koch, ilustra como esta legislação poderia proporcionar uma rara oportunidade para o planeamento e controlo do fim da vida. Aos 92 anos e após décadas enfrentando um câncer incurável, Helen organizou sua morte assistida com impressionante serenidade, marcando-a para um sábado, por ser mais conveniente para seus filhos. Mostrando um nível incomum de controle sobre seu próprio destino, ela até ligou para a seção de óbitos do jornal. O jornal New York Timesuma semana antes do procedimento, para discutir os detalhes do anúncio.
Estes casos levantam uma questão inevitável: uma morte programada, conhecida e organizada resulta num luto mais suave ou mais doloroso para a família? Não existe uma resposta fácil. Um estudo qualitativo de 2022 analisou as experiências de luto e as reações sociais de 27 pessoas nos Países Baixos que perderam os seus parceiros. Doze deles sofriam de transtornos mentais e morreram por morte assistida por médico e 15 por suicídio.
Os resultados mostraram que o luto após a morte assistida foi menos doloroso do que o luto após o suicídio. Nos casos de morte assistida, o facto do pedido ter sido avaliado pelos médicos e aprovado ajudou familiares e amigos a compreenderem o sofrimento mental do falecido, enquanto no caso de suicídio, os parceiros sobreviventes tiveram por vezes de enfrentar desafios legais e maior estigma social.
Outro estudo, uma revisão sistemática, analisou dez artigos sobre o impacto do luto em pessoas que perderam entes queridos devido à eutanásia ou ao suicídio assistido. Os resultados mostraram que, em geral, essas pessoas apresentavam níveis de luto, saúde mental e estresse pós-traumático semelhantes ou inferiores aos daqueles que perderam alguém por morte natural. O envolvimento no processo de tomada de decisão e o sentimento de respeito pela vontade do falecido parecem facilitar o luto.
No entanto, as limitações dos estudos incluem amostras não representativas e retrospetivas, destacando a necessidade de pesquisas mais robustas à medida que mais países legalizam estas práticas. A idade do paciente, o comunicação com a famíliao estado de saúde são alguns dos fatores que influenciam o impacto emocional da eutanásia.
Profissionais experientes como a Dra. Ellen Wiebe, que trabalha no programa MAID no Canadá, acreditam que o direito de escolha é fundamental. Wiebe, que também realiza abortos, vê ambas as práticas como uma extensão do mesmo princípio de autonomia sobre o próprio corpo. Nas entrevistas, revela que nunca se arrependeu de ter facilitado um procedimento de eutanásia, embora reconheça que, em alguns casos, houve desentendimento entre a vontade do paciente e a da família. “Sigo a vontade do paciente”, afirma, defendendo que a dignidade e a autonomia devem prevalecer mesmo nas situações mais difíceis.
No entanto, a legalização da eutanásia levanta questões espinhosas e merece uma debate cuidadosoo que vai além da garantia do direito de escolha. Um dos receios mais comuns é que as pessoas vulneráveis — especialmente as que vivem na pobreza, com doenças crónicas debilitantes ou que se sentem um fardo para as suas famílias — possam ser subtilmente pressionadas a optar pela morte assistida. A possibilidade de que o desejo de “não ser um fardo” acabe se tornando um motivo oculto para a decisão de morrer é real, especialmente em sociedades onde o o custo dos cuidados de saúde é elevado e os recursos são limitados.
Outro ponto preocupante é o risco de os sistemas de saúde, públicos ou privados, verem a eutanásia como uma alternativa económica aos tratamentos prolongados e dispendiosos. Isto poderia criar um pressão implícita para médicos e pacientes, distorcendo o verdadeiro propósito do procedimento. Como podemos garantir que a escolha seja sempre genuína e não influenciada por fatores financeiros ou familiares? Estas questões são legítimas e precisam ser trazidas à mesa. Contudo, evitar a discussão sobre a eutanásia por medo destes dilemas não elimina o problema – apenas perpetua o sofrimento.
A falta de opções para pessoas com doenças terminais e crónicas resulta muitas vezes em mortes solitárias, dolorosas e desatendidas. O silêncio sobre o tema não evita suicídios em contextos desesperadores, onde pessoas sem acesso a uma morte digna e assistida acabam por tomar medidas drásticas por conta própria. É um equilíbrio delicado que precisamos de encontrar: proteger os mais vulneráveis, evitar abusos e pressões externas, garantindo ao mesmo tempo autonomia e dignidade para aqueles que escolhem conscientemente acabar com as suas vidas de uma forma controlada e compassiva. Falar abertamente sobre o fim da vida é complexo e incômodo, mas essencial.
* Ilana Pinsky é psicóloga clínica, com doutorado pela Unifesp. Ela é autora de Emotional Health: How Not to Freak Out in Unstable Times (Context), foi consultora da OMS e da OPAS e professora da Universidade de Columbia
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