O carta de despedida de autoria de Antonio Cícerolançado após o suicídio assistido de escritordetido legalmente na Suíça na última quarta-feira, dia 23, percorreu o mundo. Teve impacto especialmente no Brasil, terra natal do poeta, conhecido tanto na literatura — a ponto de ocupar a cadeira número 27 da Academia Brasileira de Letras (ABL) — quanto nas canções populares, que atravessam a cultura brasileira, como “O último romântico”com o qual ele compôs Lulu Santosou “Fullgas”escrito em coautoria com Marina Limasua irmã.
A carta é assertiva, escrita por quem demonstra lucidez, traz uma carga poética (como não poderia ser de outra forma), uma pulsação firme alicerçada na dignidade de viver e morrere levanta muitas camadas de um assunto que ainda é tabu em grande parte do mundo: morte assistida.
Na Suíça, apenas o suicídio assistido é permitido por lei. A eutanásia, no entanto, não o é. A diferença entre as duas práticas é, basicamente, quem administra a dose letal do medicamento. No suicídio, a própria pessoa morrerá. Na eutanásia, um profissional de saúde. Em ambos os casos, a morte é “assistida” porque conta com assistência e prescrição de médico ou outro especialista. Também em ambos os casos, a morte ocorre a pedido do paciente, geralmente em condições de saúde graves, crónicas, irreversíveis e/ou terminais. Um sofrimento relatado como intolerável.
A repercussão da carta de despedida de Antonio Cícero expressa a urgência que temos em falar sobre autonomia e o que é dignidade no fim da vida. Acima de tudo porque explica o quanto estamos despreparados para lidar com as delicadezas do tema. A Organização Mundial da Saúde (OMS) está convencida de que nenhuma carta escrita por uma pessoa que morrerá por suicídio deve ser publicada.
Não há clareza quanto às cartas de despedida em casos de suicídio assistido. O que sabemos é que a orientação de que cartas suicidas não sejam publicadas é ainda mais enfática para os veículos de imprensa, que têm grande alcance. Porém, com a saída de Antonio Cícero, essa barreira foi mais do que ultrapassada — pela mídia, pelos artistas, escritores, leitores e muitos outros.
A suicidologia entende que o suicídio é um evento tão impactante que pode haver comportamento de contágio. O mais conhecido é o negativo: o Efeito Werther. Batizado em homenagem ao personagem principal do livro mais famoso de Goethe, o fenômeno busca explicar as pessoas que tomam a decisão definitiva de cometer suicídio a partir da identificação pelos motivos ou personalidade de alguém que morreu por suicídio.
Por outro lado, lendo o Efeito Papagenoinspirado na obra de Mozart, revela que uma conversa aberta, honesta e responsável sobre o suicídio pode inibir o comportamento daqueles que estavam pensando em tirar a própria vida. O Efeito Papageno esclarece uma questão fundamental: quando há uma cobertura responsável do suicídio, com todos os cuidados recomendados pela OMS, estamos todos mais protegidos.
Em nome da chamada liberdade, quem podemos aprisionar? A partir do entendimento de quem foca no tema suicídio, seguir as orientações da OMS é fundamental. O entendimento é que as pessoas que estão em situação de vulnerabilidade, principalmente aquelas que se identificam com as condições de quem escreveu o adeus, podem absorver o conteúdo como uma gota d’água. Em outras palavras, um número de pessoas que nunca conheceremos poderá morrer por suicídio a partir de então.
O o suicídio é um fenômeno multifatorial e envolve vários detalhes, como social, financeiro, familiar, ambiental, saúde mental, contexto tecnológico, fatores de risco e fatores de proteção de cada indivíduo. Para quem está no limite, uma carta de despedida pode reforçar a crença de que o suicídio é uma saída.
A maioria de nós não está protegida pelas fronteiras suíças: o acesso à morte assistida é restrito; o escopo da carta, não. Como sabemos, em países onde não temos autonomia sobre os nossos corpos, o suicídio acarreta um fardo extra de dor. Um suicídio com estrutura e amparo legal é diferente de um suicídio como o que acontece no Brasil, clandestinamente, por meios cruéis. Nestes casos, a carta (ou mesmo o áudio ou vídeo) é um recorte, um retrato de um momento agudode provável sofrimento profundo, de alguém que está à beira de um ato extremo e definitivo.
Pelo que sabemos do caso de Antonio Cícero, foram realizados uma série de exames que confirmaram o processo da doença de Alzheimer, que, como sabemos, é irreversível, e só então foi autorizada a morte assistida. Morreu pacificamente, sem dor, com a dignidade em que acreditava. Teria sua carta, portanto, outra função, outro peso? Este é um conteúdo escrito sob a certeza da maturidade de quem não quer enfrentar as conhecidas manifestações do Alzheimer.
Até que ponto uma carta de despedida é a bandeira mais forte a ser hasteada na necessária luta pela autonomia dos nossos corpos? É claro que a decisão de Antonio Cícero é uma isca — ou um gancho, como dizemos no jornalismo — para essa conversa, que precisa acontecer, e logo. Mas será que publicar o conteúdo completo é a única forma de levantar a questão? Talvez nem toda carta de despedida seja uma carta de suicídio. Se o mesmo conteúdo escrito tivesse sido, por exemplo, falado por Antonio Cícero em entrevista a um canal de televisão, semanas antes de sua própria morte, teria o mesmo impacto e a restrição da OMS?
Confesso que quero me juntar aos que defendem enfaticamente a divulgação da carta de Antonio Cícero como voz poética, como voz de luta, como voz de um indivíduo íntegro e orgulhoso. A questão aqui não é concordar ou discordar da carta, ou mesmo da decisão. A questão do suicídio toca a nossa mente e é justamente nesse momento que precisamos respirar fundo, dar um passo atrás e olhar para o assunto com sobriedade.
Se muitos especialistas em suicidologia afirmam que pessoas em situação de vulnerabilidade podem ser induzidas à própria morte, até que ponto valeu a pena publicar uma carta de despedida? Haveria um número razoável de mortes por contágio que toleramos apenas para que a carta fique exposta?
Tanto na teoria como na prática, o suicídio assistido e a eutanásia são completamente diferentes do suicídio puro e simples. A questão aqui é o impacto que essa cadeia de palavras tem sobre aqueles que consideram tirar a própria vida.
Em qualquer estrutura básica de comunicação existe o emissor, o receptor, o meio do caminho e qualquer ruído. O remetente, neste caso, tem o direito de querer que a sua palavra se espalhe. O receptor que não flerta com a ideação suicida absorve o conteúdo de uma determinada forma. Mas e aqueles que flertam? Não tenho muita certeza disso, mas acredito que focar nesses receptores deveria ser uma prioridade.
Acredito que esta discussão tenha mais perguntas do que respostas. Mas, em caso de dúvida, adotar uma posição segura, segundo as orientações da OMS, parece-me ser o mais adequado a fazer. Mesmo que pareça conservador ou mesmo que, em certa medida, desconsidere as nuances do caso específico de Antonio Cícero.
Precisamos falar mais e melhor sobre autonomia e o que é dignidade para cada um de nós, principalmente no final da vida. No Brasil não é permitida nenhuma forma de morte assistida. Não estamos nem perto de uma conversa madura sobre isso. Mas parece-me que – felizmente – a percepção de que os avanços são urgentes está a aumentar. Um processo irreversível. Como diria um amigo meu: “A pasta de dente não volta para o tubo”.
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*Juliana Dantas é jornalista especializada em envelhecimento, saúde mental, Cuidados Paliativos, morte e luto. É diretora de comunicação do Movimento inFINITO e diretora do Instituto Ana Michelle Soares
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