Há quase duas décadas, o mundo conheceu a nova fisionomia da francesa Isabelle Dinoire (1967-2016). Até então desconhecida, ela ganhou as manchetes após ser atacada pelo próprio labrador, que desfigurou grande parte de seu rosto, e se tornou a primeira pessoa na história a se submeter a um transplante facial. É uma das operações mais complexas da medicina — e, não surpreendentemente, realizada em poucos centros no mundo, nenhum deles no Brasil. O procedimento de Isabelle foi um salto ousado, inaugurando um método que, com melhorias e tecnologias de ponta, devolveu qualidade de vida, autonomia e sorrisos a quem de outra forma estaria condenado a conviver com deformidades limitantes. Desde 2005, quando a francesa passou pela mesa cirúrgica, foram realizados pelo menos cinquenta transplantes em onze países para reconstruir rostos comprometidos por acidentes e tumores. E agora acaba de ser publicado o primeiro estudo resumindo as experiências. Sua conclusão: a proposta é segura e eficaz para a reabilitação de pacientes traumatizados física e psicologicamente por danos ao seu cartão de visita.
A cirurgia de Isabelle, que recebeu nariz, boca e queixo de um doador morto, abriu as portas para um campo que envolve alto nível de refinamento técnico para interligar ossos, músculos e uma rede de vasos sanguíneos. O procedimento facial requer intenso suporte pré-operatório: a equipe desenha as intervenções utilizando modelos informatizados prévios, e o paciente precisa receber todo o apoio emocional de alguém que usará o rosto de outra pessoa. Mesmo com todas as adaptações anatômicas e cuidados para evitar a rejeição dos tecidos, o cuidado é enorme, pois, diferentemente de um órgão interno, o rosto pode ser visto e tocado a todo momento.
Para os médicos, o desafio é garantir que todas as etapas sigam o roteiro meticulosamente planejado. “Nosso trabalho acontece em espaços pequenos, com muitos nervos e vasos delicados que precisam ser reconectados para garantir a máxima funcionalidade possível”, disse Adam Taylor, professor de anatomia da Universidade de Lancaster, na Inglaterra, a VEJA. Com o avanço das técnicas e dos recursos, os resultados têm superado as expectativas, inclusive em termos estéticos — num processo que deixa para trás o início da recuperação chocante dos primeiros pacientes operados. Prova visível disso é o americano Aaron James, de 46 anos. Sobrevivente de um acidente com cabos de alta tensão, ele não só recebeu parte do rosto, como também fez história através do procedimento pioneiro de transplante total do globo ocular. Mesmo sem conseguir enxergar, o olho não encolheu, mantendo a pressão e o fluxo sanguíneo.
Explorar novas possibilidades é viável graças à integração de tecnologias como planejamento 3D e estudos para uso de inteligência artificial, o que melhora a triagem de compatibilidade entre doadores e receptores. E, se havia medo de que esses pacientes tivessem seus dias encurtados por limitações, estudo publicado na revista Cirurgia Jama aponta que a sobrevida em cinco anos chega a 85% e, em dez anos, 74%. “A taxa de sobrevivência sugere que esta é uma opção reconstrutiva a longo prazo”, disse Pauliina Homsy, cirurgiã e investigadora da Universidade de Helsínquia, na Finlândia. No entanto, a expansão do método enfrenta grandes obstáculos.
Ainda faltam profissionais especializados em todo o planeta e a cirurgia, que pode durar 24 horas, exige equipes de mais de 100 pessoas. Os custos estimados de um único transplante giram em torno de US$ 350 mil – e isso equivale a US$ 20 mil por ano em medicamentos para prevenir a rejeição. No Brasil, ainda falta regulamentação e locais próprios para transplantes, mas ganham espaço procedimentos de reconstrução facial que utilizam próteses cada vez mais realistas. “Temos profissionais altamente capacitados, mas é preciso evoluir nos aspectos éticos e lidar com custos elevados”, afirma Clayton Souza, coordenador de cirurgia plástica e microcirurgia reconstrutiva do Hospital de Amor, em Barretos (SP). São desafios que a medicina espera superar para devolver a algumas pessoas a felicidade que só um rosto é capaz de traduzir.
Publicado em VEJA em 8 de novembro de 2024, edição nº. 2918
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