Como escritor, tenho o hábito de revisitar o passado. Ao longo da história do meu pai, Rubens, sequestrado e assassinado durante a ditadura militar, vejo a memória como um bem precioso. Minha mãe, Eunice (1932-2018), foi sua zelosa guardiã. Imagine o golpe que foi saber, há duas décadas, que ela sofria de Alzheimer, aos 72 anos. Além da dor enfrentada por uma doença terrível, eu temia que suas descobertas duramente conquistadas sobre a tirania da IA- 5 desapareceria gradualmente. Foi para garantir que isso nunca acontecesse que escrevi um livro sobre a vida dele, Ainda estou aqui. Até hoje acho que ela teria feito melhor — sempre foi uma excelente narradora — mas senti a responsabilidade de colocar tudo no papel aos primeiros sinais de esquecimento. Como sempre quis lançar luz sobre sua trajetória, fiquei feliz quando o diretor Walter Salles me procurou para transformar a obra em filme, que estreará no Festival de Veneza, em setembro. Éramos amigos de infância e ele conheceu bem minha mãe, mesmo depois do Alzheimer. O pai de Walter, ministro da Fazenda de João Goulart, também foi perseguido e exilou-se.
O período entre o diagnóstico e a morte de alguém com Alzheimer é chamado de “longo adeus”. Os sintomas começam e nem suspeitamos do resultado. “É normal, coisa da idade”, pensei. Mas então, com o tempo, os passos da doença vêm, um após o outro. Os sentidos deterioram-se, assim como a capacidade de se movimentar, reconhecer pessoas e comunicar. O primeiro alerta foi quando minha mãe, que administra as finanças dos filhos, começou a ter dificuldade em fazer contas simples. Depois ler o jornal tornou-se um desafio. Houve um tempo em que ela pensou que a televisão estava quebrada e saiu para comprar uma nova. Logo ele esqueceu o que tinha feito, voltou à loja e pegou outro. No final, ele ficou com três dispositivos. Exatamente ela, que detestava TV e limitava as horas que minhas quatro irmãs e eu passávamos na frente da tela. Seu negócio eram livros.
Ver minha mãe desaparecer foi angustiante. Ela era o núcleo da família, cuidou dos filhos durante toda a vida. De repente, os papéis foram invertidos. Quando a doença piorou, organizamos a rotina dele, um verdadeiro furacão de tarefas —incluindo finanças, supermercados, cuidadores, remédios. Marcamos uma intervenção judicial e eu me tornei oficialmente responsável por ela. Os tempos que se seguiram foram agridoces. Por um lado, toda a família, incluindo tias, irmãs e sobrinhos, retomou o hábito de se reunir para passar os últimos bons momentos com Dona Eunice, que eram muitos. Houve um tempo em que minha esposa, eu e nossos dois filhos, que ainda eram bebês, nos mudamos para a casa dela. Costumávamos passar as manhãs ouvindo jazz e conversando. Por outro lado, ver a figura mais forte que já conheci tornar-se tão vulnerável foi desorientador e profundamente triste.
As pessoas que vão embora costumam ser elogiadas, mas Eunice, minha mãe, foi uma verdadeira guerreira. Seu nome tornou-se sinônimo de resistência. Ela era apaixonada por meu pai e, sofrendo com a viuvez aos 40 anos e tendo sido presa, manteve os pés no chão. Em sua luta, ela nunca perdeu a doçura nem deixou que nada atrapalhasse seu relacionamento com os filhos. Pelo contrário: nos aproximou. Quando sofri o acidente que me deixou paraplégico, aos 20 anos, foi ela quem me salvou, alimentando minha vontade de continuar vivendo. Carrego sua sabedoria e postura como exemplos. No dia em que Fernando Henrique Cardoso assinou a lei que reconhece os desaparecidos durante a ditadura, ela abraçou um general. Era o jeito dele – ele estava procurando um acordo, um meio-termo. Na verdade, falta isso, com tanta polarização. Mais do que nunca é preciso mergulhar na memória de Eunice. Ela morreu há seis anos e a perda ainda dói. Mas ao cutucar o passado, renovo minha esperança no que está por vir.
Marcelo Rubens Paiva em depoimento a Amanda Péchy
Publicado em VEJA em 30 de agosto de 2024, edição nº 2.908
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