Para a maioria das pessoas, a festa de final de ano, como o Réveillon, marcada por grandes comemorações – é um momento de alegria, emoção e confraternização. Mas parte da comunidade de seres vivos pode vivenciar situações de extremo sofrimento nessas ocasiões, levando a ferimentos graves, sequelas e até mortes, devido ao barulho causado pelos fogos de artifício e pela explosão dos fogos de artifício.
As luzes que anunciam o ano novo, uma tradição centenária em todo o mundo, não costumam ser positivas para animais domésticos e selvagens, nem para pessoas com transtorno do espectro do autismo (TEA) ou com alta sensibilidade ao som. O assunto é grave, preocupa especialistas, responsáveis, vítimas e mobiliza autoridades, inclusive o Congresso Nacional, que analisa projeto de lei para proibir artefatos pirotécnicos que emitam sons muito altos.
Os animais têm um alcance auditivo muito maior do que os humanos. No caso dos cães, por exemplo, eles conseguem ouvir sons até quatro vezes mais distantes do que ouvem e em frequências muito mais altas. Além disso, segundo especialistas, eles não entendem a origem do ruído, o que agrava a sensação de perigo. É como se estivessem diante de uma ameaça iminente, sem possibilidade de fuga ou proteção.
“Os fogos de artifício com explosões causam grande sofrimento aos animais devido à sua audição extremamente sensível. Eles conseguem captar frequências sonoras que não percebemos, e o barulho repentino e alto dos fogos de artifício é interpretado como uma ameaça. pânico e até dores físicas. Muitos entram em desespero, tentando fugir, o que pode causar acidentes graves, como quedas ou enforcamento por coleiras, em casos extremos, animais com problemas cardíacos ou respiratórios podem até sofrer colapsos fatais”, descreve o professor Neander. Oíbio, mestre e profissional em medicina veterinária.
Impacto abrangente
Uma pesquisa do Grupo Petlove, divulgada há pouco mais de uma semana, mostra que a maioria dos animais domésticos tem medo de fogos de artifício e reage de alguma forma. A pesquisa entrevistou cerca de 1.200 tutores em todo o país.
De acordo com os números, 72,7% dos tutores entrevistados indicaram que o animais de estimação tentam se esconder em um local mais seguro quando ouvem fogos de artifício, 58,1% parecem assustados ou “perdidos” no ambiente e 52,3% apresentam tremores decorrentes dessa situação de pânico. As tentativas de fuga e de busca de colo humano aparecem em seguida, em 37,2% e 36,1% dos casos, respectivamente.
Na zona rural de Planaltina, região administrativa do Distrito Federal, a ativista Andréia Maia e sua família mantêm o Instituto Arca de Noéum abrigo temporário para animais de estimação abandonada, que conta atualmente com cerca de 400 cães e 100 gatos.
“Já perdemos dois animais que estavam em convulsão por causa do barulho dos fogos de artifício no réveillon”, relata. “Costumamos entrar em canis, tentamos tranquilizar, mas pouco funciona”, acrescenta. Mesmo em áreas rurais, mas próximas aos centros urbanos, ocorre o uso de fogos de artifício e fogos de artifício, com pouco que se possa fazer. “Ligamos para 190 [Polícia Militar] Eles nem aparecem aqui”, protesta.
No DF, uma lei de 2020 proíbe a venda, manuseio, queima e lançamento de fogos de artifício ou artefatos pirotécnicos com ruído, com exceção daqueles que tenham efeitos visuais sem som, ou com menor intensidade (até 100 decibéis). Além de ser uma prática ilegal, a comercialização constitui crime nos termos do artigo 253.º do Código Penal, com pena máxima de dois anos de prisão.
Especialistas ouvidos pela reportagem apontam que o impacto das explosões varia entre espécies da fauna e, claro, entre humanos, dependendo do perfil. Os caninos tendem a demonstrar medo de forma mais visível, latindo, chorando ou tentando fugir. Já os gatos tendem a se esconder e podem apresentar alterações comportamentais mais sutis, mas não menos preocupantes.
“Os gatinhos sofrem muito com o barulho e as ‘explosões’ de fogos de artifício, pois acreditam que é uma situação perigosa. Há quem não resista e morra, tendo um infarto pela forte descarga de adrenalina e afins no corpo”, relata a professora Juliane Araripe, que coordena a organização Maternidade Felinarede de protetores voluntários independentes, com atuação em Brasília, que atuam no resgate, fomento e encaminhamento de doações responsáveis de gatos. O coletivo conta atualmente com 150 animais abrigados.
Sofrimento selvagem
As aves estão entre as espécies mais afetadas, pois são extremamente sensíveis a ruídos altos, podendo sofrer infartos devido ao estresse, abandonar seus ninhos e perder a orientação de voo, colidindo com árvores e outros obstáculos. Em ambientes rurais, animais de criação como cavalos, gado e galinhas podem ficar desesperados, resultando em ferimentos e mortes.
“Mamíferos e répteis podem entrar em estado de pânico, escondendo-se em locais inadequados, o que os deixa mais expostos a predadores ou acidentes. Além disso, incêndios com explosões repetidas alteram padrões naturais de comportamento, como alimentação, reprodução e migração. impactos de longo prazo no equilíbrio ambiental É importante lembrar que, diferentemente dos animais domésticos, os animais silvestres não contam com quem intervenha para minimizar seu sofrimento”, alerta o veterinário Neander Oíbio. Em áreas de proteção ambiental, o som alto é considerado crime ambiental e está sujeito a multa.
Autismo e distúrbios sensoriais
Aos 34 anos, a autônoma Mila Guimarães, de Belo Horizonte, lembra do sofrimento causado pelo barulho dos fogos de artifício, ou “foguetes”, como são chamados em Minas Gerais. Autista nível 2 e também com diagnóstico de transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH), ela relata uma vida inteira vivenciando momentos de pânico durante a véspera de Ano Novo e outros momentos de comemorações públicas.
“O que posso dizer dos fogos de artifício é que eles são extremamente perturbadores, me deixam desnorteado, me dão ansiedade, medo, tristeza. Já fui parar várias vezes no hospital”, afirma. “Minha mãe me conta que desde pequena eu perguntava sobre esses fogos de artifício e a resposta dela foi que era uma tradição. Para alguém que é autista, como eu, essa resposta nunca foi apropriada. tem que ser a mesma coisa, poderá haver adaptações para melhorar a qualidade de vida de quem sofre com o ruído. Não percebo porque é que ainda se usa fogo-de-artifício nestas alturas”, acrescenta.
“O autismo, por si só, já traz sensibilidade, principalmente a sensibilidade auditiva. E essa sensibilidade, assim como o próprio autismo, responde a um espectro, que pode ir desde um pequeno desconforto em um ambiente mais barulhento até não aguentar estar em um ambiente barulhento. em que as pessoas estão conversando, conversando e até ouvindo sons à distância”, explica a psiquiatra Ana Aguiar, ela própria uma pessoa neurodivergente, também com autismo, e uma das pioneiras no diagnóstico e acompanhamento de pessoas no espectro do autismo na idade adulta .
“Quando ocorre um clique como esse, muitas sensações podem ser percebidas em pessoas autistas, desde dor de cabeça, sensação de alfinetes e agulhas na cabeça, sensação de desorientação, e isso é extremamente perigoso, porque se a pessoa não foi orientada durante toda a vida sobre o que eles têm de sensibilidade, ela não vai saber como agir naquele momento”, argumenta a médica.
Campanha contra a debandada
Além do DF, outras unidades da federação, como Goiás e Amapá, além de cidades como São Paulo, Campo Grande, Belo Horizonte, Porto Alegre e Curitiba possuem legislação que proíbe a fabricação e comercialização de fogos de artifício que explodem acima um determinado volume de som.
Em outubro deste ano, o Senado Federal aprovou um projeto de lei, de autoria do senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), que proíbe, em todo o território nacional, a fabricação, o comércio, o transporte, o manuseio e o uso de fogos de artifício e artefatos pirotécnicos que produzam ruído. Os incêndios destinados à exportação estão excluídos deste veto. Pela proposta, qualquer empresa que descumprir a legislação estará sujeita a multa de até 20% do faturamento bruto. Quem utilizar os produtos poderá ser multado entre R$ 2.500 e R$ 50 mil. O texto agora está em análise na Câmara dos Deputados.
Em uma ação que busca garantir celebrações mais inclusivas e respeitosas, o Instituto Cultural e do Bem-Estar Animal (ICBEM), que funciona em Brasília, lançou uma ampla campanha de conscientização contra o uso de fogos de artifício com ruído. Além de exigir o acompanhamento da legislação local, a campanha também promove o uso de fogos de baixo consumo energético, sem causar danos à saúde e ao bem-estar de pessoas e animais. “Os fogos de artifício luminosos oferecem um espetáculo igualmente belo e mais inclusivo, alinhando tradição com responsabilidade social”, afirma Gleison Willy, presidente do instituto.
Diretrizes
Embora garantir comemorações livres de fogos de artifício ainda seja uma realidade distante, especialistas orientam sobre como prevenir ou minimizar o impacto desses ruídos. No caso dos animais de estimação, é importante preparar dentro de casa um ambiente seguro para o animal.
“Crie um espaço onde ele se sinta protegido, com acesso a cobertores ou a um espaço fechado, como um quartinho. Sons mais suaves, como uma música relaxante ou o som da TV, podem ajudar a mascarar o barulho dos fogos de artifício. casos, o proprietário deve procurar orientação veterinária”, recomenda o veterinário Neander Oíbio.
Algumas terapias comportamentais e medicamentos que ajudam a reduzir a ansiedade dos pets nesses momentos. E outra medida de contenção é o uso de faixas de compressão ou “roupas calmantes”, que dão sensação de segurança ao animal.
No caso de pessoas com audição muito sensível, a dica da psiquiatra Ana Aguiar é preparo e previsibilidade. “Se você está em uma festa de Ano Novo e sabe que vai rolar fogos de artifício, prepare-se o máximo possível, sobre quanto tempo vai durar, a que distância você estará do barulho, se vai ouvir muito ou pouco e o quanto você aguenta É fundamental conhecer o próprio corpo e seus limites”, observa.
Há seis anos, Mila Guimarães, que é autista, diz que sempre usa fones de ouvido com cancelamento de ruído. Dessa forma, ela aproveita as luzes dos fogos de artifício sem se incomodar com as franjas. Esta é também uma recomendação da Ana Aguiar. Como alternativa aos fones de ouvido, existem protetores intra-auriculares que podem ser úteis para reduzir o impacto dos sons de fogos de artifício.
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