Mulher com câncer ginecológico muda útero de lugar e engravida – Jornal Estado de Minas

Mulher com câncer ginecológico muda útero de lugar e engravida – Jornal Estado de Minas



A cabeleireira catarinense Angélica Hodecker era casada recentemente e tinha apenas 30 anos quando recebeu o diagnóstico que a deixou perplexa: ela tinha câncer de colo de útero, o terceiro tumor maligno mais comum entre as mulheres, atrás apenas de mama e colorretal, segundo o National Instituto do Câncer (Inca). Jovem e ainda sem filhos, ela queria ser mãe e se viu diante da necessidade de tomar decisões urgentes, que poderiam mudar o seu sonho de ser mãe.

O primeiro tratamento proposto era bastante radical para uma mulher que queria engravidar em algum momento: retirar o útero, as trompas e os ovários para eliminar qualquer chance de progressão do câncer. Com isso, o sonho de estar grávida chegaria ao fim. “A doença só afetou o colo do útero, por que foi necessário retirar tudo?” perguntou o cabeleireiro.

Angélica procurou um segundo especialista e encontrou outra alternativa de tratamento para seu caso: fazer a conização, tipo de cirurgia que retira apenas a parte doente do colo do útero, preservando assim os demais órgãos do aparelho reprodutor. A partir daí, o médico avaliaria se era necessária ou não uma intervenção mais agressiva.

Ela foi submetida ao procedimento, mas os resultados indicaram que a cirurgia por si só não foi suficiente para eliminar o tumor – seria necessário fazer quimioterapia e radioterapia pélvica. Como resultado, ela se tornaria infértil.

Nesse caso, a preservação da fertilidade poderia ser feita através do congelamento de óvulos, mas uma futura gravidez teria que ser feita em barriga de aluguel, pois o útero que recebe radioterapia perde a elasticidade de suas fibras musculares e de sua parte funcional, o endométrio. , começa a curar. Dessa forma, o órgão não consegue manter a gravidez.

“Minha alternativa foi interromper o tratamento contra o câncer para tentar engravidar o mais rápido possível. E, depois da gravidez, eu retomaria o tratamento contra a doença”, afirma. “Rejeitei essa hipótese completamente. Eu queria ser mãe, mas era impossível interromper o tratamento para tentar engravidar. E se o câncer progredisse durante esse período?”

Foi nesta fase de incerteza que Angélica procurou uma terceira opinião. A alternativa apresentada foi fazer uma traquelectomia (procedimento que remove o colo do útero, mas não o corpo do útero) e uma linfadectomia (retirada dos gânglios linfáticos da pelve).

O problema é que, mesmo após essa cirurgia, ela teria que passar por ciclos de radioterapia e quimioterapia e, consequentemente, ficaria infértil. Foi então que descobriu uma técnica ainda experimental, mas muito promissora: realizar a cirurgia de transposição uterina, ou seja, movimentar temporariamente o útero, com o objetivo de preservar o órgão para uma futura gravidez.

A proposta inédita

A técnica foi desenvolvida em 2015 pelo cirurgião oncológico Reitan Ribeiro, de Curitiba, e consiste em transferir os órgãos reprodutores (útero, trompas e ovários) do lugar, reposicionando-os na parte superior do abdômen da mulher, entre o fígado e o umbigo. . A ideia é mantê-los intactos e longe dos efeitos da radiação durante o tratamento do câncer. Ao final dos ciclos de quimioterapia e radioterapia, uma nova cirurgia devolve os órgãos à posição original.

A proposta era fazer algo absolutamente inédito. Naquela época, em 2021, já haviam sido realizadas no Brasil outras cinco cirurgias de transposição uterina por câncer ginecológico, mas nenhuma delas envolvia uma paciente com câncer de colo de útero – o caso de Angélica seria o primeiro da literatura científica mundial. Até o momento, cerca de 20 mulheres já fizeram essa cirurgia no Brasil.

“Estamos em um momento de transição. Partimos do conceito de cirurgia, que inicialmente foi feita de forma experimental, mas estamos constatando que é uma alternativa cirúrgica viável, de baixo custo e de baixa complexidade para preservação da fertilidade nessas mulheres”, explica o ginecologista especializado em cirurgia robótica e Câncer. o ginecologista Renato Moretti, do Hospital Israelita Albert Einstein, um dos poucos centros capazes de realizar transposição uterina no Brasil.

“Não tive comparações, não tive ninguém para me dizer se daria certo ou não. Teve um caso de sucesso, que resultou em gravidez, mas foi um lipossarcoma [câncer raro, nas células de gordura]. Meu marido e eu pensamos muito, mas não [não conseguir engravidar] nós já tínhamos isso. Uma única sessão de radioterapia pélvica afetaria minha fertilidade, então decidimos tentar”, lembra Angélica, que foi paciente de Renato nesse processo.

Mas nem todas as mulheres com cancro ginecológico são elegíveis para cirurgia. A técnica só é indicada para quem tem potencial para engravidar mais tarde, deseja engravidar e tem alguma doença oncológica que não afete o útero. “É importante destacar também que a transposição uterina é aplicável imediatamente após discussão multidisciplinar, com o mínimo de atraso na radioterapia que a paciente necessita para tratar o câncer”, enfatiza Renato.

Segundo o especialista, cerca de 20% a 30% das pacientes que descobrem o câncer de colo do útero em estágio inicial terão que fazer radioterapia pélvica. Nas fases mais avançadas, todos necessitam deste tratamento. “Resumindo, a radioterapia faz parte do tratamento do câncer em pelo menos 80% das mulheres, porque a realidade no Brasil é fazer o diagnóstico em estágios mais avançados”, observa.

Angélica e o marido concordaram em tentar a transposição uterina, mas estavam preparados para o pior. Se a técnica não funcionasse como esperado, eles congelariam óvulos e espermatozoides para uma futura barriga de apoio ou poderiam optar pela paternidade por meio da adoção. “Ficamos um pouco hesitantes, porque era uma pesquisa e, se não desse certo, voltaríamos à estaca zero. Mas tivemos que tentar.”

Em uma semana, Angélica estava na sala de cirurgia. A cirurgia foi considerada um sucesso e, em menos de 10 dias, a cabeleireira já estava no hospital para iniciar os ciclos de radioterapia. Fez todo o tratamento (25 sessões de radioterapia diárias e seis sessões de quimioterapia uma vez por semana) e, em março de 2021, substituiu seus órgãos.

A surpresa da gravidez espontânea

Após a cirurgia, Angélica passou a fazer acompanhamento periódico a cada três meses para garantir a eliminação do câncer. “Tudo estava indo muito bem. Meu útero estava intacto, vascularizado, eu estava ovulando normalmente, mas minha menstruação estava bloqueada por anticoncepcional. Nesse período, o médico permitiu que suspendêssemos o uso de anticoncepcionais e conversamos sobre a possibilidade de gravidez”, conta.

Mas havia mais um detalhe. Devido ao tratamento, o canal cervical de Angélica ficou estreitado. Seria necessário passar por um procedimento para abrir essa região e, talvez, uma gravidez natural fosse mais difícil de ocorrer. Renato conversou com o casal sobre a possibilidade da fertilização in vitro (FIV).

“Eu era recém-casada, queria ser mãe, mas não necessariamente naquele momento. Mas quando dizem a uma mulher “ou você tem um filho agora ou talvez tenha dificuldade em engravidar no futuro”, o tempo passa. Então começamos a ideia da gravidez logo após o tratamento do câncer”, conta.

A proposta era tentar engravidar naturalmente dentro de um ano. Caso não desse certo, o casal passaria para a reprodução assistida. Não foi necessário. Cinco meses depois, Angélica engravidou sem nenhum tratamento auxiliar. “Quando minha menstruação atrasou e o primeiro teste de farmácia deu positivo, fiquei sem acreditar. Chorei sentada no chão do banheiro. Repeti três vezes o teste da tira, fiz outro exame digital e até fiz exame de sangue para ter certeza de que era verdade”, lembra.

Ela enviou a foto do exame de farmácia para Renato e perguntou: “Estou grávida, e agora?” E ele respondeu: “Agora vamos começar o pré-natal”. E foi assim que começou o acompanhamento da gravidez inédita, mas considerada de alto risco por não ter colo do útero.

Tudo correu normalmente. Isabel – carinhosamente chamada de Bebel – nasceu na véspera de Natal, dia 24 de dezembro de 2022, saudável, pesando 2,2 kg e medindo 43 cm. Esse nascimento foi tão importante para a literatura científica que um relato de caso foi publicado em agosto de 2024 no “Journal of Surgical Oncology”.

A história de Angélica abre portas para que outras mulheres com câncer ginecológico se submetam ao procedimento para preservar a fertilidade. “Foi mágico. Não quero romantizar a maternidade, mas cheguei a pensar que um dia não conseguiria vivenciar isso”, conta a mãe de Bebel.

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