CURITIBA, PR (FOLHAPRESS) – O uso medicinal da Cannabis sativapopularmente conhecida como maconha, tem apresentado avanços significativos nas pesquisas científicas, principalmente no tratamento da epilepsia e das dores crônicas. Em novembro, uma decisão do STJ (Supremo Tribunal de Justiça) que autorizou a importação de sementes e o cultivo de cânhamo industrial – variedade incapaz de gerar efeitos psicotrópicos – reacendeu as discussões sobre regulamentação e acessibilidade no uso medicinal da planta.
As principais evidências científicas sobre os benefícios terapêuticos da Cannabis foram reunidas em nota técnica divulgada pelo Programa Institucional de Políticas sobre Drogas, Direitos Humanos e Saúde Mental da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz), em abril do ano passado.
Segundo a pesquisa, há um número crescente de estudos indicando o potencial dos canabinoides – como o canabidiol (CBD) e o delta-9-tetrahidrocanabinol (THC) – no tratamento de diversas condições clínicas. A força científica desta evidência varia de acordo com a doença, indicando diferentes níveis de comprovação da segurança e eficácia dos compostos em usos terapêuticos específicos.
A epilepsia é a condição mais estudada em relação ao uso terapêutico de canabinóides. Ensaios clínicos randomizados demonstraram que o canabidiol (CBD), um dos compostos da planta, é eficaz na redução de crises convulsivas em pacientes com epilepsia refratária, ou seja, resistentes aos medicamentos tradicionais.
“O óleo de cannabis trouxe melhorias significativas para crianças que sofrem centenas de convulsões diárias e não encontravam alívio com outros tratamentos”, afirma Gabriel Freitas, professor e coordenador do Centro de Informação de Medicamentos da UFPB (Universidade Federal da Paraíba).
Dor crônica e espasticidade, distúrbio que causa contrações e enrijecimentos musculares involuntários, associados à esclerose múltipla, também têm sido alvo de estudos promissores. Metanálises com dezenas de ensaios clínicos demonstraram que o uso de canabinóides reduz significativamente os sintomas de dor em comparação com os tratamentos convencionais.
“Pacientes com esclerose múltipla, por exemplo, sofrem com espasticidades musculares dolorosas, e estudos já indicam melhora significativa com o uso da Cannabis”, explica Freitas.
Além disso, o THC, outro composto da planta, tem sido utilizado como antiemético, auxiliando no controle de náuseas e vômitos em pacientes em quimioterapia, por exemplo.
EVIDÊNCIA AINDA LIMITADA PARA OUTRAS CONDIÇÕES
Embora os estudos sobre o uso medicinal da Cannabis tenham avançado nas últimas décadas, para condições como transtornos de ansiedade, Transtorno do Espectro Autista (TEA) e outras doenças, as evidências ainda são inconclusivas.
“Existem estudos que mostram melhora nos sintomas de irritação e agitação no autismo, mas isso não é cura para o transtorno”, ressalta Cassiano Gomes, diretor da Associação Brasileira de Apoio à Cannabis Esperança (Abrace).
A investigação em curso também explora o potencial da cannabis em doenças como a síndrome de Tourette, artrite reumatóide, demência e perturbações psiquiátricas. Porém, segundo Gomes, são necessários mais estudos para determinar a segurança e eficácia desses usos.
Jaqueline da Rocha Cason, 23 anos, com diagnóstico de Transtorno do Espectro do Autismo (TEA) grau II, relatou alterações positivas após começar a usar canabidiol. “Foi a melhor coisa que fiz, parei de ter pensamentos autolesivos, não tive mais rigidez cognitiva nem problemas com ruídos e cores”, afirma.
De facto, a investigação pré-clínica e clínica destacou o potencial dos canabinóides no tratamento de distúrbios relacionados com o medo e a ansiedade. Segundo o neuropsiquiatra José Alexandre Crippa, professor da USP (Universidade de São Paulo) em Ribeirão Preto e referência em estudos sobre o tema, o CBD apresentou efeitos ansiolíticos tanto em experimentos com animais quanto em humanos. Mas as amostras ainda são limitadas e precisam de confirmação com populações maiores.
O pesquisador Gabriel Freitas alerta que o uso medicinal da cannabis não é recomendado para todos os casos. “Pessoas com esquizofrenia, transtorno bipolar ou histórico de abuso de drogas devem evitar o uso, assim como jovens menores de 25 anos, devido à intensa formação de sinapses nesta faixa etária”, afirma.
DECISÃO DO STJ E ACESSO À SAÚDE NO BRASIL
No dia 13, o STJ autorizou a importação de sementes e o cultivo de cânhamo industrial no Brasil. Esta variedade de Canábis, sem efeitos psicotrópicos, destina-se exclusivamente a fins industriais e medicinais. A decisão vale apenas para empresas, e o cultivo deverá seguir as regulamentações que a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) e a União deverão estabelecer no prazo de seis meses.
Para Cassiano Gomes, representante da Abrace, a autorização poderá impulsionar a produção de extratos medicinais de baixo custo. “Essa medida ajuda a indústria a iniciar o cultivo em larga escala”, afirmou.
Apesar da decisão, o impacto jurídico imediato ainda é considerado limitado. “As pessoas continuarão a tomar medidas judiciais para obter autorização para produção”, explica Vladimir Saboia, titular da Comissão Jurídica do Setor de Cannabis Medicinal da OAB-RJ (Ordem dos Advogados do Brasil – Rio de Janeiro). Ele acredita que o Brasil precisa desenvolver uma cultura própria em vez de regulamentar a importação de sementes.
Uma pesquisa divulgada na semana passada pela Netseeds estima que o mercado brasileiro de sementes de Cannabis para autocultivo terapêutico pode valer entre R$ 650 milhões e R$ 800 milhões. O país já está em processo de regulamentação da prática e conta com mais de 5 mil cultivadores licenciados.
“Estamos caminhando rapidamente para a regulamentação definitiva da Cannabis medicinal”, afirma Saboia. “Esta é uma tendência global e uma commodity brasileira que precisa ser regulamentada com urgência.”
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