Desde a sua estreia no mundo dos estudos em 1956, as células-tronco emergiram como uma grande e promissora ferramenta para a medicina regenerativa. Com potencial para se metamorfosear em diferentes unidades do organismo, eles passaram por altos e baixos em sua carreira científica, alcançando conquistas extraordinárias enquanto enfrentavam desafios e contratempos dentro e fora dos laboratórios. Agora, acaba de ser ultrapassada uma fronteira relevante: investigadores japoneses conseguiram, de forma inédita, restaurar a visão de três pessoas com graves danos na córnea, estrutura da superfície ocular que nos permite ver com clareza. Este é um marco na história das batalhas para tentar superar ou reverter a cegueira.
O trabalho, publicado na renomada revista A Lancetaé o resultado de uma aposta numa inovação que valeu, em 2012, o Prémio Nobel da Medicina ao japonês Shinya Yamanaka e ao britânico John Gurdon: a reprogramação de células estaminais adultas para um estado semelhante ao embrionário, o mais adequado para isso. eles atingem seu máximo poder transformador. Com as chamadas células pluripotentes induzidas, um grupo da Universidade de Osaka decidiu tratar duas mulheres e dois homens com idades entre 39 e 72 anos que apresentavam lesões na córnea e não conseguiam mais enxergar com clareza.
Vale explicar que, dentro do globo ocular, existe um reservatório natural de células-tronco em uma região da córnea chamada limbo. Doenças genéticas, queimaduras químicas, alergias graves e infecções podem colapsar a região, fazendo com que essas unidades fiquem deficientes. Isso vem acompanhado da formação de cicatrizes — afinal, o tecido não consegue se reparar — capazes de comprometer a capacidade de ver o mundo. Mas por que não tentar um transplante de córnea convencional? “Em alguns casos, como nesses pacientes do Japão, o procedimento tem mau prognóstico”, diz o oftalmologista Otávio Magalhães, pesquisador da Unifesp que desenvolve córneas artificiais de titânio. “Isso é o que acontece com pessoas que já fizeram transplantes sem sucesso.”
O diferencial do método japonês foi modificar células sanguíneas de um doador saudável para realizar o transplante em 2019. Dois anos depois, os especialistas observaram que três dos quatro pacientes apresentaram melhora significativa na acuidade visual. Os olhos que antes tinham aspecto leitoso voltaram a brilhar. E as paisagens também foram vistas novamente com clareza. O próximo passo será testar a intervenção numa amostra maior de voluntários.
A terapia celular é uma prova incontestável do empenho de cientistas de diversos cantos do planeta em encontrar soluções capazes de fechar o cerco às diferentes causas de deficiência visual. Uma das invenções, que ainda não tem data para início dos testes em humanos, é o chip óptico da Neuralink, empresa do bilionário Elon Musk. O Blindsight, que recebeu uma espécie de selo da agência reguladora americana, o FDA, como um “dispositivo inovador”, tem como objetivo emitir sinais normalmente direcionados da retina, na parte posterior do olho, para o cérebro, levando à formação de imagens, mesmo em pessoas com problemas graves no nervo óptico e até mesmo com falta de globos oculares. “Existem diferentes fontes de estudos com o objetivo de minimizar a cegueira, problema ainda sujeito a estigma”, afirma a oftalmologista Myrna Serapião, diretora médica da rede hospitalar Vision One.
A preocupação com a perda de visão é global. A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que pelo menos 2,2 mil milhões de indivíduos vivem com algum grau de deficiência, mas cerca de mil milhões teriam uma condição que poderia ter sido prevenida ou revertida com tratamento. É o caso de condições que exigem monitoramento para detecção precoce, como o glaucoma — lesão do nervo óptico causada pelo aumento da pressão ocular — e a retinopatia diabética, que danifica os vasos sanguíneos que irrigam a retina. Portanto, os exames preventivos e os check-ups oftalmológicos anuais são tão cruciais quanto os avanços terapêuticos que assistimos.
Ainda existem barreiras a serem superadas, e o alto custo das novas tecnologias é uma delas. Contudo, a evolução da medicina permite vislumbrar um futuro promissor para a recuperação de um sentido tão ligado às emoções, à orientação no espaço e à construção de memórias. “Nos próximos anos teremos uma revolução para superar a cegueira”, afirma Myrna. Pesquisas japonesas com as célebres células-tronco indicam que agora é possível ver uma luz no fim deste túnel.
Publicado em VEJA em 22 de novembro de 2024, edição nº. 2920
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