No dia 29 de novembro de 2019, fez frio e choveu muito no outono de Basileia, no interior da Suíça. A cidade, banhada pelo rio Reno, próxima da França e da Alemanha, fica a cerca de 100 km da capital, Berna.
Havia um capixaba residente em Minas Gerais. No dia anterior, ela havia recebido uma ligação com o retorno de um pedido importante: poderia acompanhar um suicídio assistido. O desejo não foi à toa: o advogado Luciana Dadalto Ela é uma das maiores pesquisadoras de bioética do Brasil e gostaria de entender como funciona o procedimento. A profissional dedica-se especialmente aos direitos dos pacientes, à dignidade de viver e morrer e defende a autonomia como valor de todo ser humano. Testemunhar um suicídio assistido na Suíça é outro elemento importante que você focará em sua carreira.
A professora descobriu então que estaria acompanhando as últimas horas de um homem de 65 anos: um australiano a 14,6 mil quilômetros de casa. Será que a Suíça é o o único país que recebe legalmente estrangeiros para realizar o procedimento. Três organizações aceitam cidadãos não suíços: Círculo da Vidao Dignitasresponsável por morte assistida do escritor brasileiro Antonio Cíceroe o Pégasoso cenário desta história.
O homem que decidiu partir não suportava mais as manifestações de Parkinson – e nem mesmo lidar com a progressão que ainda estava por vir. É preciso estar lúcido e orientado durante todo o processo burocrático, e também na hora da saída: o clareza dos desejos do paciente É uma condição irrevogável para o suicídio assistido. O procedimento ocorre para quem denuncia sofrimento intolerávelgeralmente na frente condições de saúde graves, crônicas, irreversíveis e/ou terminais.
“Entrei lá e eles estavam revisando toda a papelada”, lembra Luciana. Ela havia chegado com frio e encharcada pela tempestade na sala do que parecia ser uma residência comum. A casa abriga o escritório de Pégasos e também a estrutura simples onde ocorrem os suicídios assistidos. Era muito papel: autorização para receber droga letal, autorização para cremação, conferência de testamentos, documentos pessoais, entre outros.
Estavam presentes o paciente, sua esposa e um de seus filhos. O outro, que morava em Londres, não conseguiu sair do trabalho. Ele investiu todo o tempo de férias em um último desejo de família: os quatro, juntos, viajaram por meia dúzia de países, em mais de um continente, antes que o destino final literal de seu pai fosse a Suíça.
Em Pégasosapós a validação dos documentos, todos se dirigiram para um quarto onde havia uma cama hospitalar, onde o homem se deitou. Ele optou por não beber a substância letal, mas sim administrá-la por acesso venoso (ou seja, na veia). Os profissionais de saúde pegaram uma bolsa de soro, retiraram o soro e encheram com o remédio. “O coordenador da organização perguntou se eu queria ajudar – e eu ajudei”, relata o advogado. Até aquele momento não havia sido feito acesso ao corpo do paciente.
O direito de morrer é uma bondade humana, uma compaixão que deve guiar-nos em todas as nossas interações ao longo da vida. É um absurdo que ainda precisemos implorar por uma maneira gentil, segura e digna de partir quando chegar a hora de acabar com nossa preciosa existência aqui.
R. Habegger, fundador da Pegasos, no site da organização
Como é de praxe, todos que não faziam parte da família saíram da sala para que a família tivesse privacidade para se despedir. Naquele dia, um anestesista, um psiquiatra, o coordenador do Pégasos e Luciana. Lá fora, os quatro sentaram-se num sofá.
Os homens, acostumados com o procedimento, alertaram Luciana que essa etapa poderia demorar. “Disseram-me: ‘Agora é preciso ter paciência, para cada família demora um pouco.’” Porém, o filho abriu a porta do quarto cerca de cinco minutos depois: “’Meu pai está pronto’, disse ele.”
A bolsa intravenosa, agora cheia com a droga letal, foi conectada ao acesso intravenoso. O dispositivo que libera ou retém o líquido foi entregue nas mãos do paciente. Estava fechado. Foi explicado ao australiano que no momento em que fosse aberto uma dose letal entraria em seu corpo e ele morreria. Mais uma vez, ele confirmou sua convicção. Foram feitas perguntas básicas: qual é o seu nome? Você sabe que dia é hoje? De onde você é? Por que você está aqui? Por que você quer morrer? Que doença você tem? Você está aqui por sua própria vontade? Você sabe o que acontecerá quando você abrir este dispositivo? Ele sabia: “Sim, vou morrer. E é exatamente isso que eu quero. Isso não é mais vida.” Tudo foi gravado por duas câmeras de vídeo. Essas imagens seriam posteriormente entregues à polícia.
O homem beijou a esposa, deu um beijo no filho. Ele abriu o aparelho e deixou a substância letal fluir em suas veias. “Em apenas dois ou três minutos ele perdeu a consciência, o médico veio até ele e confirmou a morte”, conta Luciana.
Caso policial
Sim, o suicídio assistido é legal na Suíça, mas o a polícia deve ser notificada imediatamente depois que o paciente sai. E aí começa outra parte burocrática. Naquele dia, a polícia demorou cerca de uma hora para chegar. “Uma demora angustiante, o clima estava desconfortável.”, destaca Luciana. “Ao mesmo tempo, tive a oportunidade de conversar com a esposa e o filho dele, agradeci por me deixarem acompanhá-los. Fiquei surpreso quando a esposa quis me agradecer de volta: ‘obrigado por lutar para que outras pessoas possam ter esse direito’”.
Relataram que, na Austrália, o estado de Victoria foi o primeiro a permitir o suicídio assistido, há apenas alguns meses. Mas havia uma regra de que o cidadão tinha que morar lá por pelo menos um ano – e o marido não tinha esse tempo. No mês seguinte à sua morte, a Austrália Ocidental foi o segundo estado a liberalizar a prática.
A família não aceitou facilmente os desejos do paciente. Foram necessários alguns meses de conversa até que o entendimento chegasse. “A mulher me disse: ‘Comecei a perceber que aquele homem não era mais meu marido, que ele não conseguia mais sorrir como antes, ser feliz como antes, e percebi que foi egoísta da minha parte não para ajudá-lo. ”, revela Luciana.
Já se passaram 12 anos desde o diagnóstico até então. Três anos de deterioração mais flagrante e os últimos três meses de perda de todas as funcionalidades principais. Foram inúmeros tratamentos, inclusive experimentais. Não aconteceu.
No meio dessa conversa, a polícia chegou. Solícitos – mas ainda policiais, com armas no coldre e tudo. Uma cena que, segundo Luciana, ficou um pouco fora de sintonia com o ambiente. Conversaram formalmente com todos os presentes, inclusive ela, e assistiram às imagens filmadas. O trabalho consistia em confirmar se o paciente estava de fato lúcido e não havia sido coagido a morrer. Não houve.
Trabalho policial realizado, era hora de aguardar a equipe equivalente à do nosso Instituto Médico Legal (IML). Mas ninguém da família nem nenhuma testemunha precisou esperar mais e todos puderam ir embora. “A esposa e o filho tinham um voo de volta para a Austrália marcado para o dia seguinte!” ele exclama. O processo de cremação ainda levaria 72 horas e as cinzas seriam enviadas para a Austrália pelo correio. “Foi uma das experiências mais intensas da minha vida, saí de lá muito impactado”, confidencia.
“Como pesquisadora, percebi o quanto é importante aliar teoria e prática. O que aprendi nesses dois dias nenhum livro, palestra ou artigo científico poderá me ensinar.”, destaca Luciana. “Como pessoa, aprendi a respeitar ainda mais a vontade dos outros. Sem julgamento, com compaixão.”, finaliza.
‘Turismo de direitos’
Morrer na Suíça não é para todos: estamos falando da ordem de 10 mil francos suíços – ou sobre R$ 65 milna mais recente pesquisa cambial. Sem contar transporte, hospedagem, alimentação e tudo que uma viagem exige. O valor cobre consultas médicas que confirmem a condição de quem quer acabar com seu sofrimento, todo encaminhamento burocrático, os profissionais de saúde envolvidos, o medicamento letal, a cremação, entre outros detalhes.
O suicídio assistido faz da Suíça um dos países destinos dos chamados ‘turismo de direitos’: em busca do que consideram uma morte digna, chegam estrangeiros de todos os lugares. O mesmo movimento acontece, por exemplo, quando, porque alguém deseja um aborto seguro e legal, sai do seu país e vai para outro onde a lei o autorize.
O Suíça não permite a eutanásiaque também é uma modalidade de morte assistida (quando há assistência), mas difere do suicídio assistido. No primeiro caso, quem administra a substância letal é um profissional de saúde, geralmente um médico. No segundo, esse profissional apenas prescreve e orienta, mas quem administra o medicamento é o próprio paciente.
No Brasil não é permitido nenhum tipo de morte assistida. Para aliviar o sofrimento após o diagnóstico de uma doença grave, os cuidados paliativos não só estão em alta como também são recomendados pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Não se assemelham de forma alguma a procedimentos que induzem à morte e não são apenas para quem está próximo de uma doença terminal. É uma abordagem de qualidade de vida que, idealmente, conta com uma gama diversificada de profissionais que olham para o ser humano como um todo, com seus desejos e medos, necessidades e gargalos. Cuidados paliativos não são abandono, nem quando “não há mais o que fazer”. Também não excluem tratamentos curativos, mas sim, trabalham em conjunto com a equipe que busca minimizar ou eliminar a doença.
Avanços e retrocessos
Em setembro passado, Luciana esteve em um evento na Europa, o Conferência Mundial pelo Direito de Morrer 2024 (ou a Conferência Mundial sobre o Direito de Morrer, em tradução livre), na Irlanda. A ideia era recalibrar a visão sobre o que está sendo discutido em diferentes países sobre morte assistida e cuidados de fim de vida.
E o que ela conseguiu constatar é que, em locais onde a eutanásia e/ou o suicídio assistido já estão legalizados, a conversa agora é rever os critérios de quem pode realizar os procedimentos. Afinal, o que é uma doença terminal? Como ficam os problemas de saúde mental? Os idosos, com diversas comorbidades, deveriam poder optar pela morte?
Mesmo em países onde o acesso aos cuidados paliativos é sólido e as múltiplas dores de alguém com uma doença grave podem ser aliviadas, ainda há pacientes que consideram o seu próprio sofrimento intolerável. E essas pessoas precisam ser vistas.
Nas nações onde a morte assistida não é permitida, o diálogo ainda está na sua infância. Os movimentos buscam mobilizar a sociedade civil e os legisladores, mas foram impactados pela avanço da ultradireita e a virada para o conservadorismo.
Perceber
Se precisar conversar, saiba que o CVV é um canal gratuito, confidencial e 24 horasque atende todo o país. Ligando para 188 ou site. Para agendar consultas com psicólogos ou psiquiatras, gratuitas ou a preços sociais, conheça Mapaudemental.com.br
*Juliana Dantas é jornalista especializada em envelhecimento, saúde mental, Cuidados Paliativos, morte e luto. É diretora de comunicação do Movimento inFINITO e diretora do Instituto Ana Michelle Soares
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