Quando ela estava no terceiro ano de faculdade, a futura médica Ana Coradazzi enfrentou, entre tenso e excitado, o primeiro anamnese da sua vida. Olhando o paciente nos olhos, eu tiraria o histórico clínico de um homem com dificuldade para engolir e perda de peso. Após a investigação, angustiada e inquieta, a estudante foi discutir o caso com a professora, que lhe contou sobre o diagnóstico daquele homem: Câncer. Reação de Ana: ela começou a chorar.
Anos depois, a mesma Ana se formaria em medicina, se especializaria em oncologia e atenderia centenas de pessoas. Mas algo marcou sua alma naquele dia no hospital universitário: a noção de vulnerabilidade. Do pacientesmas também o médicos. Reconhecer isso – além de reconhecer que nem sempre se tem todas as respostas e que, independentemente das circunstâncias, é preciso aceitar a dor do outro – é um dos passos para praticar o que ela chama medicina baseada em empatia.
Esse conceito permeia os textos de O Doutor Sutil, publicado recentemente pela MG Editoresuma coletânea de reflexões e histórias que, em comum, expõem as nuances, as belezas e os desafios de cuidar da saúde e do bem-estar de alguém. Um livro que aborda feridas difíceis do exercício da medicina e das atitudes de quem a pratica, sem nunca cair no conformismo, nas soluções irrealistas ou no abandono do antigo juramento de Hipócrates.
Líder da equipe oncologia clínica de Faculdade de Medicina de Botucatu da Unespespecialista em cuidados paliativos e expoente do movimento Medicina LentaAna escreve com a experiência e a delicadeza de quem se dedica aos pacientes à beira do leito, forma novos profissionais e, como “otimista incorrigível”, sonha com uma medicina mais empática no país.
O médico sutil
Como a palavra, o autor.
Como exercer a medicina baseada na empatia num contexto onde coexistem a corrida contra o relógio nos consultórios e a busca por metas e lucros nos hospitais?
Talvez o primeiro passo seja repensar a ideia de que a empatia requer necessariamente muito tempo para ser exercida. O exercício da empatia tem mais a ver com a perspectiva de quem a exerce do que com o tempo disponível. Do ponto de vista da assistência médica, o tempo é, de facto, escasso e é precisamente por isso que precisa de ser utilizado com sabedoria e sem desperdícios. Usar uma perspectiva empática faz parte desta estratégia, pois nos tornamos mais capazes de identificar com precisão as necessidades dos outros e oferecer estratégias alinhadas com essas necessidades.
Embora possa parecer paradoxal, agir com empatia poupa-nos tempo, porque melhora a nossa capacidade diagnóstica, reduz a necessidade de exames desnecessários e aumenta a adesão das pessoas aos tratamentos, resultando em menos falhas terapêuticas e menos complicações. A empatia é uma ferramenta terapêutica, não um luxo opcional.
Temos assistido a uma multiplicação de escolas médicas e cursos de especialização em todo o país. Até que ponto as noções de atenção e cuidado ao paciente que você defende no livro têm sido ensinadas na graduação e na pós-graduação?
Do meu ponto de vista, vivemos tempos bastante sombrios na educação médica, e por uma série de razões. O ensino à beira leito, onde alunos e professores tinham contato muito próximo, permitiu que os alunos vivenciassem de perto as relações profissionais e aprendessem pelo exemplo. Hoje isso não acontece mais. O foco do ensino tem sido a transmissão de informações técnicas (no máximo), com pouca ou nenhuma atenção às questões humanas que fogem ao âmbito biológico.
Os médicos aprendem a lidar com doenças, não com humanos doentes. Isso parece assustador para mim. A relação entre médico e paciente pode ser terapêutica em vários níveis, desde a compreensão do caso até o alívio do sofrimento, e traz benefícios importantes para o próprio profissional, que vê mais sentido em sua profissão.
A multiplicação indiscriminada e imprudente de faculdades e cursos que muitas vezes negligenciam estas noções é, em grande medida, responsável pela profunda frustração e comprometimento da saúde mental que temos visto, tanto entre pacientes como entre profissionais. Mas já existem bons cursos que têm focado nessas questões, criando disciplinas relacionadas às Humanidades Médicas. Como optimista incorrigível, espero que estas iniciativas sejam utilizadas como exemplos a seguir.
Você acredita que os novos recursos tecnológicos – da telemedicina à inteligência artificial (IA) – somam pontos a favor ou contra a medicina baseada na empatia?
Acredito que nenhuma tecnologia é boa ou ruim por si só. O uso que fazemos deles é o que determina o seu papel e benefícios potenciais. Tanto a telemedicina quanto a IA são ferramentas incríveis que podem ajudar significativamente nos cuidados de saúde das pessoas. O problema começa quando começamos a acreditar que eles podem resolver todos os problemas humanos. Temos essa tendência incômoda (e um tanto irracional) de nos encantarmos por tudo que é novo, moderno ou revolucionário, a ponto de negligenciarmos o que é essencialmente humano.
Se conseguirmos delegar o que é essencialmente técnico às novas tecnologias e dedicar o tempo e a energia que nos restam ao que é essencialmente humano, receberemos cuidados de muito maior qualidade. Infelizmente, a história nos mostra que a tendência é não incorporar as tecnologias de forma sensata e cuidadosa. É bem possível que sacrifiquemos completamente a nossa capacidade de empatia em nome da produtividade e da facilidade. Um minuto de silêncio para nós.
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