Em artigo publicado na última quarta-feira (28/08) na revista Nature, pesquisadores da Universidade de Oxford, no Reino Unido, e do Centro de Pesquisa em Obesidade e Comorbidades (OCRC) – financiado pela FAPESP e sediado na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) – descrever onde e como esse componente do sistema nervoso periférico atua no gasto energético e calórico por meio do neuropeptídeo Y (NPY).
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Responsável por passar informações entre um neurônio e outro no cérebro, esse neurotransmissor é amplamente estudado pelos cientistas em relação ao sistema nervoso central, mas sua ação nos nervos periféricos (fora do cérebro e da medula espinhal) e sua capacidade de atuar nas células adiposas (adipócitos), que protegem o corpo contra a obesidade, nunca haviam sido investigados.
“Como esse novo componente não atua no cérebro, mas na periferia [sistema nervoso periférico] do corpo, abre uma nova perspectiva para o desenvolvimento de medicamentos que possam ser mais simples, mais eficientes e até mais baratos para tratar a obesidade. Isso porque, diferentemente dos medicamentos mais recentes para o tratamento da obesidade, que atuam no cérebro, a nova abordagem terapêutica não precisaria ser uma molécula grande [medicamentos biológicos] muito menos ser capaz de superar a barreira [hematoencefálica] que protege o cérebro, o que simplifica muito as questões de acesso e desenvolvimento de um novo medicamento”, afirma Licio Velloso, pesquisador principal do OCRC e um dos autores do artigo.
É necessário explicar que o sistema nervoso periférico se divide em dois grandes grupos: o somático e o autonômico. Enquanto o sistema nervoso somático regula os movimentos voluntários e as sensações na pele (tato, frio, calor), o outro é responsável por movimentos como batimentos cardíacos e pressão arterial, por exemplo, que funcionam independentemente da vontade do indivíduo.
O sistema nervoso autônomo também é dividido em duas partes. Cabe ao ramo simpático preparar o organismo para situações de alerta, enfrentamento ou fuga de uma ameaça. Envolve, portanto, alterações como a aceleração dos batimentos cardíacos e maior gasto energético. O sistema nervoso parassimpático normaliza o funcionamento dos órgãos internos assim que a ameaça cessa.
“Os livros de neuroanatomia, por exemplo, descrevem que o sistema nervoso simpático funciona liberando norepinefrina nas terminações nervosas. No trabalho, porém, foi identificado que, além da noradrenalina, esses nervos também expressam o neuropeptídeo Y, algo até então desconhecido nesta parte do sistema nervoso. Quando o NPY está ativo no hipotálamo, o indivíduo sente fome. No sistema nervoso periférico foi identificado que o NPY realiza a ação contrária, acelerando o metabolismo e, consequentemente, o gasto energético”, explica Licio Velloso.
Metabolismo acelerado
Além de comprovar a existência do novo componente, os pesquisadores de Oxford mostraram que o NPY atua em um terço dos nervos simpáticos de todo o corpo, promovendo a produção de novas células de gordura envolvidas na termogênese (queimam energia e produzem calor).
Ao contrário do tecido adiposo branco, que armazena o excesso de calorias consumidas, os adipócitos marrons e beges têm um papel benéfico do ponto de vista metabólico, pois utilizam a gordura armazenada para liberar calor.
No laboratório da investigadora Ana Domingos, em Oxford, os cientistas descobriram que a libertação de NPY no sistema nervoso periférico ocorre em sinapses que estão em contacto com células murais (localizadas à volta dos vasos sanguíneos infiltrados nos tecidos). “Uma característica importante das células murais é que elas são precursoras de um tipo específico de tecido adiposo, o tecido adiposo marrom, essencial para a regulação do metabolismo”, disse Licio Velloso à Agência FAPESP. “Dessa forma, a equipe de pesquisa de Oxford verificou que, quando o nervo se conecta a uma célula mural através de uma sinapse, ele libera NPY e ativa a diferenciação da célula mural, que se torna precursora do tecido adiposo marrom, algo muito importante para maior controle metabólico.”
A última parte do estudo foi realizada no laboratório da Unicamp. Para caracterizar a ação do novo componente do sistema nervoso periférico, os pesquisadores utilizaram camundongos geneticamente modificados para não expressarem o neuropeptídeo Y no sistema nervoso simpático.
“Observamos que esses animais ficaram mais obesos e tiveram dificuldade em manter a temperatura corporal estável quando expostos ao frio. [baixa capacidade termogênica]. Eles também apresentavam distúrbios metabólicos, como predisposição ao desenvolvimento de diabetes. Animais com NPY que ingeriram a mesma quantidade de alimento que os demais apresentaram proteção contra a obesidade”, afirma.
Centro versus periferia
Uma curiosidade descoberta pelo grupo é que o NPY atua de forma completamente diferente no peso corporal quando está no sistema nervoso central e no sistema nervoso periférico. Enquanto no cérebro o NPY interfere na saciedade – induzindo a fome – na periferia sua relação é com o metabolismo energético, pois promove a proliferação de células que queimam gordura em vez de armazená-la.
“Já se sabia que os adipócitos termogênicos podem ter origem em células murais. Sabia-se também que as células murais podem detectar o NPY porque possuem um receptor para esse neuropeptídeo. [a proteína NPYR1]. O que conseguimos mostrar, pela primeira vez, é que sem NPY no sistema periférico, os ratos tornam-se obesos – não porque comem mais, mas porque queimam menos gordura. É provável que este mecanismo seja generalizado a outros tipos de obesidade, uma vez que o nosso estudo mostrou que estes nervos produtores de NPY degeneram com o aparecimento da obesidade induzida por alimentos”, relata Ana Domingos.
Segundo o investigador, o papel protetor do NPY contra a obesidade agora descoberto em ratos fornece um mecanismo biológico que pode ser associado a uma característica genética humana revelada recentemente pelo Common Metabolic Diseases Knowledge Portal (CMDKP) – uma ferramenta de dados financiada pela Accelerating Medicines Iniciativa de Parceria (AMP), da Fundação para os Institutos Nacionais de Saúde (FNIH), consórcio que apoia o laboratório de Ana Domingos na Universidade de Oxford.
A ferramenta, que quantifica o envolvimento de diversos genes em doenças, indicou que o NPY está associado à obesidade humana, mas não a padrões alimentares alterados. “Isto é bastante surpreendente, pois existem dezenas de estudos que mostram as ações do NPY nos neurónios cerebrais que promovem a ingestão de alimentos – daí a sua designação como estimulante do apetite. [peptídeo orexigênico]”, diz.
“Como, então, as mudanças no NPY poderiam paradoxalmente ser associadas a um índice de massa corporal? [IMC] elevado em humanos, mas não a mudanças nos padrões alimentares? O nosso estudo revela uma possível explicação para isto ao sugerir que a dissipação de energia pode desempenhar um papel mais crucial do que o apetite na manutenção do peso corporal em alguns indivíduos – embora não na maioria deles”, conclui Ana Domingos.
Na opinião de Licio, a descoberta e caracterização desse novo componente do sistema nervoso autônomo – que regula o metabolismo na periferia do corpo – abre caminho para o desenvolvimento de novas terapias medicamentosas contra a obesidade. “A expectativa é que uma molécula – provavelmente um ligante do receptor do neuropeptídeo Y – possa atuar aumentando o metabolismo e a queima de calorias, que é exatamente o que descobrimos que o NPY faz no sistema nervoso periférico”, diz.
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