O prefeito Sebastião Melo, de Porto Alegre, decidiu tocar nas feridas do nosso tempo e defender a liberdade de expressão em seu discurso de posse. Se alguém quiser defender uma ditadura, seja de que lado for, os seus direitos devem ser garantidos. Ele não defendeu nenhuma ditadura. Ele apenas sugeriu que isso deveria ser um direito. Os monarquistas poderiam defender o império; PT, Chavismo ou Castrismo; trabalhista, o regime de Vargas; direitistas, o regime dos generais. Tudo como sempre aconteceu no Brasil, um país onde, como me comentou certa vez um professor americano, “cada lado tem sua ditadura preferida”. Pois bem: o prefeito foi denunciado ao Ministério Público. Na opinião destas pessoas, seria um crime não só defender uma ditadura, mas simplesmente defender o direito mais amplo à liberdade de expressão. A coisa toda é bizarra, mas revela uma tendência cultural incrivelmente autoritária que se espalhou por toda a nossa sociedade. O fenômeno não se restringe à política. Na Bahia, a cantora Claudia Leitte também será investigada por alterar o nome de uma divindade em uma música. “Voltamos ao século XVII”, comentou-me um conhecido ao vê-lo. “Não”, respondi, “voltamos a 1986, quando o Estado censurou Je Vous Salue, Mariepor Godard, por ofender valores da fé cristã”. Se a moda pegar, em breve teremos o Estado revisando músicas, filmes e tiras de humor, e talvez até conversas de WhatsApp para ver se alguma regra de fé está sendo ofendida. Bobagem completa. Mas está lá. Para um cara como eu, que acha que o mundo está avançando, ainda é uma decepção.
Os exemplos são bizarros, mas servem para mostrar a loucura autoritária que tomou conta do país. Grande parte da obsessão pela censura vem da esquerda, que está no poder e tem amplo controle da mídia. Mas também de uma parte não insignificante da “direita”, que estava mesmo em frente ao quartel, pedindo intervenção militar. Como disse certa vez o mestre Sérgio Buarque, a democracia no Brasil sempre foi “um lamentável mal-entendido”. O contexto da frase era diferente, mas a ideia se aplica perfeitamente ao Brasil de hoje. Fizemos uma boa transição para a democracia na década de 1980, mas não estabelecemos remotamente uma cultura liberal, baseada em direitos, na base da sociedade. Daí o nosso drama com a liberdade de expressão. Ainda não aprendemos a diferença entre “defender uma ditadura e defender o direito de defender uma ditadura”. Isso e coisas muito mais complicadas, como apoiar o fim da imunidade parlamentar ou a onda de censura prévia que corre desenfreada.
O Brasil pode estar se transformando em um parque temático de ideias antigas. Na expressão de Niall Ferguson, temos assistido, nos últimos tempos, a uma “mudança na vibração global”. Na geopolítica, surge um mundo sob a liderança de Trump, onde Justin Trudeau sai de cena e os conservadores estão prestes a regressar ao poder na Alemanha. No plano cultural, as pesquisas indicam o recuo da onda wake e o retorno ao “jeito dos fundadores” nas empresas, e não mais à mandona dos “comitês de diversidade”. Na semana passada, tivemos outro fato marcante da reviravolta global: o discurso de Mark Zuckerberg dizendo que é preciso “voltar às raízes da liberdade de expressão”. Musk vinha liderando esta posição no mundo da big tech, Jeff Bezos já havia enfrentado as tropas militantes, vetando o apoio do Washington Post a Kamala Harris e fazendo uma defesa dura do jornalismo imparcial. E agora temos Zuckerberg. O que ele quer dizer: a onda de censura foi longe demais. Inclusive na América Latina, com tribunais secretos que podem “ordenar silenciosamente a remoção de conteúdo pelas empresas”. Alguém suspeita do que ele está falando?
“De Sérgio Buarque: ‘A democracia no Brasil foi um mal-entendido’”
Zuckerberg diz que os verificadores de fatos são tendenciosos e que sistemas de controle complexos cometem erros. Algo assim: em Outubro de 2020, um activista progressista na Califórnia, instalado no departamento de moderação do Facebook, pensou que estava a proteger a verdade e a democracia ao esconder revelações comprometedoras do portátil de Hunter Biden, filho do presidente eleito. Exceto que não foi. Ele apenas protegeu a mentira em nome da sua predileção ideológica. Precisamente o que Zuckerberg gentilmente chama de “erro”. Em nome de boas razões, acabamos na sarjeta de sempre: a censura, geralmente política. Isso se aprofunda na tradição moderna. Foi o que escreveu o poeta John Milton ao Parlamento inglês, há 380 anos, no seu Areopagíticapedindo o fim da censura aos livros. Se todo sistema de controle de informação é falho, o segredo é escolher o menos imperfeito: um sistema descentralizado, sujeito a muitas vozes, que incorpore a visão plural da sociedade, como as “notas comunitárias”. Isto, em vez da lógica centralizada de agências e departamentos.
Zuckerberg disse algo simples: a regulamentação digital deve concentrar-se em temas como a protecção das crianças, o combate às drogas e o terrorismo. E não censura política ou cultural. Na “proteção” desta ou daquela posição ideológica, divindade ou visão sobre comportamento, sexualidade e valores. Isso pelo simples fato de que o mundo é diverso, apesar de incomodar muita gente. A declaração causou uma espécie de surto na militância. Uma das joias que li dizia que Zuckerberg havia declarado “guerra ao mundo”. Bingo. É um erro psicanalítico perfeito. Durante muito tempo, parece que essas pessoas realmente imaginaram que eram (ou representavam) “o mundo”. Agora eles descobrem o óbvio: não são. São pessoas de caráter autoritário que se acostumaram a ocupar o centro do ringue. Eles se acostumaram com os jornais apoiando seus candidatos; com redes censurando oponentes, com sua versão do mundo ensinada em livros didáticos. Agora eles precisam compartilhar os brinquedos.
Muitas pessoas atribuíram o discurso de Zuckerberg à eleição de Trump. Faz sentido. Apenas suspeito que ele esteja menos atento a Trump do que às razões que o levaram ao poder. Razões que passam pela cabeça das pessoas. Do cansaço de governos que custam muito, trabalham mal e querem regular o modo de pensar das pessoas. Tudo me lembra a visita que fiz a Zygmunt Bauman, há cerca de uma década, na sua casa em Leeds, Inglaterra. Em algum momento, ele nos lembrou da dicotomia colocada por Freud, em O mal-estar na civilizaçãoentre liberdade e segurança. Não havia um equilíbrio perfeito entre os dois valores, disse ele, mas suspeitava que o pêndulo tinha oscilado demasiado na direcção da liberdade. E que em breve as pessoas clamariam pelo controle. Foi o que se viu na década seguinte. O auge da onda de despertar, a histeria em torno da regulação da rede e tudo o que sabemos. Muitas pessoas sugerem que esse tempo acabou. O pêndulo do velho professor Bauman estaria se movendo novamente. Desta vez, voltando à liberdade.
Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper
Os textos dos colunistas não refletem necessariamente a opinião de VEJA
Publicado em VEJA em 10 de janeiro de 2025, edição nº. 2926
bxblue emprestimos
quero fazer empréstimo consignado
como fazer emprestimo consignado
empréstimo c
bxblue simulação
emprestimo consignado para aposentado inss
emprestimo consignado online rapido
empréstimos consignados
simulação para emprestimo consignado
empréstimo consignado para negativado
emprestimos para aposentados inss