José Falero: ‘Desde que nos conhecemos por gente, só conhecemos exploração’

José Falero: ‘Desde que nos conhecemos por gente, só conhecemos exploração’



A obra de José Falero se caracteriza por seus personagens complexos na tentativa de lidar com as agruras da vida numa Porto Alegre periférica. Ao narrar a vida de pessoas que se encontravam em empregos precários, os obstáculos do preconceito e da falta de apoio do poder público, o gaúcho tem uma obra com uma formação inequivocamente política. Ele faz isso em seu mais novo livro “Vera”, que será lançado oficialmente em Belo Horizonte nesta terça-feira (17/12).

“Vera” é o quarto livro publicado pela Falero e sucede ao romance “Os supridores”, à coletânea de crónicas “Mas em que mundo tu vive” e ao livro de contos “Vila Sapo”, todos lançados pela Todavia. Com a inédita protagonista feminina, o escritor embarca em uma nova etapa de seu trabalho com o livro que será tema de conversa a partir das 19h na livraria Jenipapo, na Savassi.

Para o Estado de MinasFalero falou sobre sua obra literária, mas, na maior parte do tempo, analisou a situação política brasileira. A entrevista completa com o escritor está disponível no canal Portal Uai no YouTube. Leia abaixo os trechos em que o autor trata mais especificamente do cenário de poder no país.

Entrevista

Suas obras têm contornos políticos que se inserem naturalmente nas histórias. Em “Os Suplidores”, por exemplo, os protagonistas passam cinco ou seis páginas discutindo a mais-valia sem necessariamente mencionar o conceito marxista. Você acredita que seu trabalho pode ajudar a popularizar a discussão política ao abordar o tema dessa forma?

É uma pergunta difícil. Acho que há duas questões embutidas aí e tentarei responder à primeira. Não sei, realmente não sei até que ponto a literatura pode contribuir para essa discussão. Não apenas meu livro, mas a literatura em geral. A literatura é um lugar muito elitista. Como você pode ver, eu não participo nas turnês do meu livro, nem minha família vai. O samba e o rap, por exemplo, estão mil anos-luz à frente, têm muito mais alcance entre as pessoas e um apelo muito mais popular. As pessoas participam das coisas, mas não participam do mundo, do universo literário. O livro é algo que ainda circula muito nas aulas confortáveis.

Não estou dizendo que você não pode contribuir. Talvez possa, mas não sei até que ponto. Eu também tenho dito isso muitas vezes. Sabe aquela famosa frase de Darcy Ribeiro? Ele disse que a crise da educação no Brasil não é uma crise, mas um projeto. Não foi que tenha dado errado, que houve um problema e que a educação ficou ruim. Existe um design para ela ser má. Venho de um bairro que tinha quase 100 mil habitantes e não tinha ensino médio. Num bairro gigantesco, é um projeto de subordinação dessas pessoas. Mas aí ele falou essa frase, e eu quero lembrar que não é só a educação que é um projeto.

Mas há muitos projetos: projetos sexistas, projetos racistas e projetos escravistas. O Brasil é um dos lugares onde essa coisa do neoliberalismo de explorar ao máximo os trabalhadores tem tido mais sucesso. A nossa história, o nosso contexto social, revelaram-se um terreno favorável para que esta mentalidade de extrair a última gota prosperasse.

Recentemente, discussões como o fim da escala 6×1 popularizaram discussões que permeiam também seus livros e os personagens em empregos precários. Como você percebe essa compreensão das pessoas entendendo que existem outras formas de trabalhar e viver em sociedade?

Temos muita dificuldade em entender que o mundo não precisa necessariamente estar nesta condição aqui. Não conseguimos entender isso quando a única referência de vida que temos é essa. Houve um dia em que fui ver um filme que se passava na Noruega, em que a menina trabalhava num livreiro. Acho que neste filme, depois de cerca de seis meses, ela largou o emprego e foi viajar. Pensei nisso e fui atrás. Vamos ver se isso é possível.

Fiz algumas pesquisas e descobri que, na Noruega, um cara que trabalha como catador de lixo ganha R$ 10 mil, trabalhando quatro horas por dia. Existem outras maneiras de lidar com o trabalho. É difícil lembrar disso quando, desde que nos conhecemos, o que conhecemos é exploração.

Qual a sua opinião sobre as críticas feitas às pessoas humildes que votam em candidatos de direita, o que ficou pejorativamente conhecido como ‘pobres direitistas’?

Por incrível que pareça, isso é parecido com o que eu estava falando e que tento fazer na literatura: trazer complexidade aos personagens. Acho que isso também é mais complexo do que simplesmente olhar e dizer: “Olha que estúpido, que desinformado”.

As pessoas que fazem essas críticas geralmente pertencem a classes confortáveis ​​que, por algum motivo, são progressistas. Essas pessoas, além do preconceito contra o que chamam de “pobres direitistas”, também não entendiam o problema. Dizem isso porque acham que se trata de: “Esse cara poderia ter feito uma escolha diferente e não fez”. Uma pessoa que pensa assim é estúpida. Prefiro chamar de estúpido quem pensa assim.

Agora temos exemplos com eleições municipais. Em São Paulotinha gente falando: “Ah, teve um apagão durante a campanha”. E tinha gente falando: “Ah, prefiro ficar no escuro do que votar num cara que vai tomar minha casa”.

Então, vamos analisar esse fenômeno. Preste atenção: esse cara tinha um motivo muito bom para não votar no candidato da direita em São Paulo, que foram os apagões. Era a prova de que a cidade não estava sendo bem administrada. Ele tinha razões concretas. O cara era prefeito, ele efetivamente administrou mal. Portanto, havia uma razão concreta pela qual as pessoas não queriam votar nele. Mas não querer votar no candidato de esquerda, que foi Boulos, baseia-se em mentiras, em desinformação.

Em Porto Alegre ocorreram enchentes, muito mal gerenciadas pela Sebastião Melo (MDB). Quer ver como as pessoas sabem disso? Em Porto Alegre, houve mais pessoas que não votaram – mais votos em branco ou urgentes que simplesmente não foram emitidos – do que votos para o prefeito que foi reeleito.

Então olha: as pessoas olharam para o Melo e pensaram: “Cara, qual a sua interpretação disso? Esse cara fez uma administração péssima, não posso votar nele. A candidata da esquerda foi Maria do Rosário (PT), também não posso votar nela”. Mas não há razão. Aí você tinha um candidato que se saiu mal e um candidato que ainda não teve chance. Mas então, o que é esse rancor? É a criminalização da esquerda que vem sendo feita no Brasil desde… acho que até antes, mas podemos conversar de 2013 para agora. É a criminalização da esquerda e do Partido dos Trabalhadores em particular.

As pessoas olham e pensam: “Não, não posso votar. Esse cara é um criminoso.” A corrupção está associada à esquerda no Brasil. E estamos começando a perceber que não se trata apenas de um problema de notícias falsas. Porque, a partir de 2018, você tem um escritório de desinformação. A máquina pública estava sendo usada para contar mentiras. Isto é um crime. Mas isso não é tudo. O problema também é que você apresenta as notícias de forma tendenciosa. E isso é feito nos grandes jornais.

Hoje há um movimento dentro da esquerda que propõe um outro olhar para os trabalhadores, uma visão mais moderna. Temos o ministro da Fazenda, Fernando Haddad (PT) dizendo que a esquerda não ofereceu um projeto emancipatório, Guilherme Boulos (PSOL) adotando propostas de Pablo Marçal (PRTB) para trabalhadores de aplicativo. Como você vê esse movimento?

Não estou suficientemente imerso no mundo da política partidária para poder compreender estes movimentos e falar adequadamente. Mas o que posso dizer é o seguinte: tenho a impressão de que funciona melhor quando é um movimento de dentro para fora, e não de fora para dentro.

Boulos pode ter as melhores intenções que tem, mas é burguês, vem de família burguesa. Por exemplo, tem uma bancada preta em Porto Alegre que é muito legal, formada por gente que veio da periferia. E mesmo quando você olha os bons exemplos dos anos 1980, das grandes lideranças que se formaram nesse período, são pessoas que vêm de dentro do sindicato, são trabalhadores. Lula talvez seja o melhor exemplo disso, o cara era sindicalizado. Ele foi formado lá.

Acho que talvez falte formação para formar líderes aí, para não virar alguém só tentando conversar com essas pessoas — embora isso também seja positivo, mas é um diálogo que não sei se aconteceu no algum ponto. As pessoas se lembram de uma época de ouro em Porto Alegre, por exemplo, quando a esquerda tinha muitas prefeituras. E você assume que, naquele momento, talvez o diálogo com a população fosse mais próximo. Não me parece isso.

Não vi a esquerda presente ali. Não posso explicar por que eles conseguiram essas prefeituras. Talvez naquela época estivesse na moda votar no PT. Mas a verdade é que não vi a presença deles ali. Certamente foi um momento de melhores políticas públicas para as pessoas das classes populares. Certamente nunca houve tantas ruas pavimentadas, houve um orçamento participativo e uma série de iniciativas bacanas. Não é isso, não é esse o meu ponto. O que quero dizer é que não vejo alguém lá todos os dias.

SERVIÇO

EVENTO

  • Lançamento do livro “Vera” em BH
  • Terça-feira (17/12/)
  • 19h
  • Livraria Jenipapo – Rua Fernandes Tourinho, 241, Savassi

LIVRO

  • “Verdadeiro”
  • José Falero
  • Editora Todavia
  • 304 páginas
  • R$ 69,90
  • 2024



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