O Governo de São Paulo conquistou judicialmente o direito a uma fazenda avaliada em R$ 70 milhões, mas a gestão Tarcísio de Freitas (Republicana) afirmou que não sabe se tem interesse em tomar posse do imóvel.
A propriedade vinha sendo disputada pelo governo há décadas. A lei de regularização fundiária que dá descontos aos agricultores para regularização de propriedades, porém, pode fazer com que, mesmo após obter gratuitamente o direito à propriedade, o governo a abra mão por um valor muito inferior ao que realmente vale.
A lei que dá descontos de até 90% aos agricultores para regularizar terras foi sancionada pelo ex-governador Rodrigo Garcia (na época, no PSDB) em 2022, mas começou a ser aplicada na gestão de Tarcísio, eleito com apoio do agronegócio.
A legislação beneficia quem está em terras públicas ocupadas ilegalmente, o que inclui áreas consideradas devolutas ou em processo de declaração. Os terrenos baldios são áreas públicas que nunca receberam destinação específica do poder público e nunca foram propriedade privada.
A área em questão é de 1.551 hectares (o equivalente a cerca de dez parques do Ibirapuera) em Presidente Venceslau, região do Pontal do Paranapanema. O caso dela exemplifica o que pode acontecer em uma cadeia para que o governo Tarcísio entregue um terreno equivalente a quatro vezes a cidade de São Paulo, conforme planejado.
O governo vem buscando a posse das terras que incluem a fazenda desde a primeira metade do século passado. Em 2003, o estado ajuizou ação na qual obteve a propriedade do terreno sem necessidade de indenização aos proprietários.
O caso transitou em julgado em 2021, segundo a Procuradoria-Geral do Estado. No entanto, o governo não se moveu para tomar posse do local.
A fazenda acabou sendo invadida por um movimento de sem-terra em fevereiro de 2022, o que gerou uma ação de reintegração de posse dos agricultores que ocupavam o local, em nome do espólio de Maria Lucília Malheiro Negrão, segundo posição da PGE a que o jornal Folha de O S.Paulo teve acesso.
No âmbito da ação, o Ministério Público afirmou não ter o “menor interesse” em ingressar no caso por não ter “qualquer exigência relativa à posse do imóvel”.
“E a posse – ou o interesse do Estado na posse do imóvel – só poderá ser considerada após a conclusão dos trabalhos preparatórios e a constatação de incidente de cumprimento de sentença em que a entrega da posse do imóvel ao estado de São Paulo será solicitado”, diz a PGE.
Segundo o órgão, não é possível afirmar um prazo para que isso aconteça porque está pendente um estudo sobre a possível instalação de projeto de regularização ou regularização da titularidade do imóvel com base na lei.
A Defensoria Pública do Estado atuou no processo, no qual argumentou que, por se tratar de um terreno baldio, os proprietários não tinham legitimidade para reivindicar a área. Segundo a defensora Taissa Nunes Pinheiro, a posição do procurador-geral contribuiu para a decisão da Justiça de retirar os sem-terra que invadiram a área, sendo citados na decisão judicial.
A manifestação do órgão foi favorável à avaliação da área para reforma agrária.
O Itesp (Fundação Instituto de Terras) publicou no Diário Oficial a aprovação para celebração de convênios envolvendo três processos envolvendo a Fazenda Santa Maria, que totalizam uma área de 2.828 hectares.
Um dos argumentos do governo a favor da lei de regularização fundiária diz respeito à possível economia em litígios e também ao pagamento de indenizações por benfeitorias em imóveis. Porém, no caso em questão, com a decisão judicial pelo direito do Estado à terra sem necessidade de pagamento de indemnização, o governo indica que contradiz o argumento económico.
Segundo nova avaliação feita pelo instituto no ano passado, as três áreas valeriam quase R$ 36 milhões. Os valores de venda, porém, seriam de R$ 10 milhões – o desconto médio, neste caso, seria de 70%, totalizando R$ 25 milhões.
O laudo obteve, porém, laudo anterior de perícia do Itesp, realizado em julho de 2022, que estimou que apenas os 1.551 hectares aos quais o estado conquistou o direito na Justiça valiam R$ 70 milhões.
A Folha questionou o governo sobre a diferença de valor, que afirmou que as autuações relativas aos três processos envolvendo a Fazenda Santa Maria “consideram apenas o valor da terra descoberta”, conforme previsto na lei de regularização fundiária que entrou em vigor em 2022.
“O laudo emitido para a área de 1.550.077 hectares apresentou avaliação para toda a propriedade, considerando o terreno descoberto e todas as benfeitorias”, afirmou o governo.
Apesar do aval positivo do Itesp às três áreas, os acordos governamentais para aliená-las com desconto não foram adiante, pois necessitam de aprovação da PGE.
Na Justiça, a defesa dos proprietários da Fazenda Santa Maria alegou possuir título de propriedade legítimo, adquirindo o terreno de boa-fé, e invocou usucapião. Citaram também a declaração do Ministério Público sobre a propriedade do terreno.
O advogado Paulo Eduardo d’Arce Pinheiro, que defende os proprietários das terras, afirma que, se o Estado se apoderasse das áreas da Fazenda Santa Maria, “representaria grave violação ao direito à regularização, previsto em lei estadual nº 17.557/2022, que criou o Programa Estadual de Regularização Fundiária”.
Afirma ainda que o não reconhecimento judicial do direito à indenização por benfeitorias patrimoniais “representava violação de normas da lei federal, o que está sendo questionado em ações rescisórias”, ajuizadas no Tribunal de Justiça de São Paulo e no Superior Tribunal de Justiça.
“Milhares de pessoas, de boa-fé, compraram terrenos e pagaram por eles, confiando nos registros imobiliários da região, que, aliás, atuam por delegação do próprio estado de São Paulo. Mesmo assim, décadas depois, especialmente a partir dos anos 90 do século passado, em centenas de processos, muitas dessas pessoas tiveram seus bens questionados pelo próprio estado de São Paulo”, afirmou o defensor.
Segundo ele, houve divergências de resultados nesses processos, com o Estado vencendo ou sendo derrotado nas ações, o que contrariaria o princípio da igualdade.
Questionado, o Governo de São Paulo afirmou que ainda não há parecer jurídico final da Procuradoria-Geral do Estado nos processos relativos à Fazenda Santa Maria.
“A Lei 17.557/2022 abriu a possibilidade de todos os ocupantes de terrenos baldios ou presumivelmente vagos solicitarem acordos com o Estado, cabendo a instrução técnica dos processos à Fundação Itesp e análise jurídica à Procuradoria-Geral do Estado”, diz governo Tarcísio.
A gestão acrescenta que um dos objetivos da lei é “justamente trazer economia aos cofres públicos, seja diretamente através da obtenção de recursos para investimentos em políticas públicas ou indiretamente evitando riscos processuais (indenizações e inadimplências), ou ainda através da própria regularização fundiária, que movimenta a economia e promove a arrecadação de impostos”.
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