Com embalo político, guardas ganham poder, efetivo…

Com embalo político, guardas ganham poder, efetivo…


O fuzil T4, com calibre 5,56 milímetros, é um dos fuzis de assalto mais potentes dos arsenais do Exército e da PF. Fabricada no Brasil pela Taurus, a arma tem capacidade para trinta projéteis, pode atingir um alvo a 300 metros de distância e seu uso é restrito às forças policiais —embora já tenha sido encontrada nas mãos de criminosos suspeitos de ligação com o PCC. Apesar da potência do equipamento, é possível vê-lo — junto com fuzis 9 mm e .40 semiautomáticos — nas mãos de guardas municipais que patrulham as ruas de Paulínia, cidade de 110 mil habitantes no interior de São Paulo , que registrou em 2024 sete homicídios dolosos, 108 roubos a pessoas e outros 26 a veículos.

O pesado arsenal nas mãos dos agentes de Paulínia não é um exemplo isolado. Pelo contrário, é um fenómeno que se intensificou na última década. Só em 2023, as prefeituras investiram mais de 11 bilhões de reais para ampliar e armar suas guardas —em alguns casos, até os dentes, incluindo, além dos já citados fuzis e carabinas, espingardas, submetralhadoras automáticas e até veículos blindados, o “ caveirões”. Nos últimos dez anos, o número de cidades com “polícia” própria cresceu 35%, chegando a mais de 1.400, das quais quase 400 equipam seus guardas com armas de fogo (veja a foto). O número de agentes vinculados aos municípios chegou a 95 mil no ano passado, o mesmo da Polícia Civil de todo o país e de um quarto do contingente da Polícia Militar, de cerca de 400 mil.

O empoderamento progressivo segue a crescente assunção pelos municípios de responsabilidades de segurança pública, até recentemente entendidas como algo que cabia aos estados. Elevado ao pódio das principais preocupações da população, o tema tornou-se quase unânime nas promessas dos candidatos, da direita à esquerda, nas eleições autárquicas. A maioria dos presidentes de câmara que tomam posse esta semana está empenhada em expandir o uso da força pelas autoridades municipais. “Essa discussão está muito sequestrada por uma disputa de protagonismo político”, avalia Eduardo Pazinato, membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

O crescente interesse político certamente contribuiu para a escalada das forças municipais. A corporação é tão antiga quanto a PM —foi criada em 1831, por Dom Pedro II, para patrulhar o Rio de Janeiro, sede da Corte. Relegado a segundo plano por um bom período, quando se limitou a proteger o patrimônio municipal, recuperou destaque com um estatuto federal próprio, em 2014, que autorizou o uso de armas de fogo. Desde então, os guardas obtiveram, por meio de decisões do Supremo Tribunal Federal, a prerrogativa de lavrar autos de infração de trânsito, abordar suspeitos, efetuar prisões em flagrante e ainda obtiveram aposentadoria especial pela prática de atividades de risco. Antes de entrar em recesso, o STF quase terminou de julgar outro caso, que poderia legalmente permitir que os guardas realizassem policiamento ostensivo.

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Na sequência dos recentes episódios de brutalidade policial, o fortalecimento jurídico e militar da guarda civil levanta naturalmente mais preocupações sobre o abuso da força por parte do Estado. “Os municípios reivindicam esse papel de enfrentamento armado ao crime sem investir em órgãos de controle como ouvidorias e corregedorias”, avalia Carolina Ricardo, diretora executiva do Instituto Sou da Paz. Segundo o IBGE, nada menos que 44% das cidades com guardas não possuem órgão de controle.

Do outro lado, das câmaras municipais, a preocupação é outra: conseguir mais recursos. Todo o processo de formação, armamento e fiscalização dos guardas civis é custeado pelos cofres municipais e, por isso, os prefeitos querem receber pagamentos do Fundo Nacional de Segurança Pública. “Se o município é tão responsável pelo combate à violência quanto os estados, precisa da mesma estrutura e segurança jurídica”, afirma Marcilio Rossini, presidente do Conselho Nacional de Secretários Municipais de Segurança. A União pensa diferente. “O papel da Guarda Municipal é essencialmente preventivo e comunitário. Não discutimos se devemos ou não ter fuzis, mas sim se vamos financiar esses fuzis. E, a princípio, não faremos”, afirma Isabel Figueiredo, diretora do Sistema Único de Segurança Pública (SUSP).

A “municipalização” da segurança pública ocorre quando há um movimento diferente em nível nacional. O ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, propôs uma PEC da Segurança, que aumenta as competências federais. O texto, que está em negociação com os governadores, já desencadeou uma disputa pelo protagonismo e autonomia de cada ente federativo. Enquanto esse debate complexo se desenrola, a lei da maioria dos prefeitos é a seguinte: arme-se se puder.

Publicado em VEJA em 3 de janeiro de 2025, edição nº. 2925



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