Armadilha identitária | VEJA

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“Ansiosa por ser presa quando retornar ao local de nascimento do Iluminismo Escocês”, escreveu JK Rowling, autora de Harry Potter, em um tweet. Rowling estava se referindo à nova “lei de crimes de ódio” que entrou em vigor na Escócia este ano. A lei menciona uma lista de grupos “protegidos”, ligados ao género, idade, orientação sexual, etc., e diz que atitudes “que uma pessoa razoável consideraria ameaçadoras” são puníveis. Caberá à polícia e aos juízes dizer exactamente o que isto significa, e não é difícil imaginar a confusão que a nova lei está a causar. Ela é um bom exemplo de uma característica do nosso tempo, definida como “segurança” pela psicóloga Pamela Paresky. A ideia de que de repente nos tornamos frágeis – ou, pelo menos, seletivamente frágeis. E que, portanto, precisamos estar protegidos. Pelo Estado, pelas empresas, pela polícia, como faz agora a Escócia. E protegido não apenas da violência, mas também das palavras, piadas, estátuas ou personagens de Fantástica Fábrica de Chocolate.

O exemplo escocês me veio à mente ao ler o excelente livro do cientista político Yascha Mounk, Armadilha de Identidade, lançado esta semana no Brasil. O livro faz um inventário de nossa atual obsessão por identidade. Em especial, envolvendo as temáticas de raça, gênero e orientação sexual. Mounk reconhece perfeitamente a relevância dos temas de inclusão. O problema é quando toda a conversa fica “monomaníaca”. O seu apelo, no final, é por uma visão universalista dos direitos. A ideia de que precisamos de normas que tratem os indivíduos “com critérios igualitários e universalmente válidos, e não com base no grupo a que pertencem”. Mounk tem uma história muito pessoal associada a este tema. Seus avós judeus sofreram perseguição e isolamento por motivos de raça e religião. Daí grande parte do seu desconforto. Deveríamos promover uma cultura “separatista” de grupos identitários? Ajustar continuamente a estrutura de direitos com base na pressão deste ou daquele segmento? Ou deveríamos navegar exatamente na direção oposta?

O livro está cheio de histórias. Com um foco: separar o joio do trigo. Distinguir o que são demandas perfeitamente legítimas por justiça e o que ultrapassa a fronteira do que ele chama de “síntese de identidade”. Um exemplo: o texto publicado pelo professor Ekow Yankah, em O jornal New York Times, sob o título “Meus filhos podem ser amigos de brancos?”. Ele menciona a vitória eleitoral de Trump e diz que ensinará “desconfiança” aos seus filhos. E mais: diz que “em breve terei que discutir com eles se podem realmente ser amigos dos brancos”. O texto é um tanto perturbador para Mounk. Estaremos dispostos a aceitar uma fratura definitiva, dada pela cor da pele, entre os cidadãos? O choque aumenta quando observa que essa mesma lógica penetrou no mundo corporativo. Ele cita treinamentos ministrados pela Coca-Cola, convocando os funcionários a tentarem ser “menos brancos”, o que significaria, segundo o manual, ser “menos opressores”, “menos arrogantes”, “menos ignorantes”, e assim por diante . .

Mounk fica perturbado quando observa que, mesmo no campo das políticas públicas, como o direito à saúde, a divisão de identidade e a segregação “positiva” têm vindo a criar raízes, particularmente nos Estados Unidos. No estado de Nova Iorque, o Departamento de Saúde sugeriu que os médicos “prescrevessem medicamentos escassos a membros de grupos étnicos minoritários”, relata Mounk. “Os cidadãos brancos, em condições idênticas, não devem ser considerados uma prioridade.” De onde veio tudo isso? Mounk evita a palavra acordado. O seu foco é produzir uma reflexão aberta, que pode ser feita por qualquer um dos lados do nosso mundo político. Obviamente, há uma longa história aí. Quando Martin Luther King liderou o movimento pelos direitos civis na década de 1960, o seu foco era universalista. A ideia de viver num país onde os seus filhos “não fossem julgados pela cor da pele, mas pelo carácter”. Essa imagem marcou toda uma geração, mas com o tempo foi se perdendo. O atual separatismo identitário vai exatamente na direção oposta: seria necessário julgar as pessoas pela cor da sua pele e pelas formas de identidade coletiva. O argumento chega até a ter um tom metafísico, num best-seller como Fragilidade Branca, de 2018, e a ideia de que “se você é branco, na América” (…) você é racista, puro e simples”. Um tipo de argumento perfeitamente infalsificável, no sentido popperiano, segundo o qual “todos os brancos são racistas. E se você discordar, isso só prova o quão racista você é”, brinca Mounk.

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“A segregação ‘positiva’ tem vindo a criar raízes, particularmente nos EUA”

O que realmente tem dançado, na esteira da atual obsessão identitária, é o valor da liberdade de expressão. “Uma ampla faixa da esquerda americana opôs-se abertamente ao ideal de liberdade de expressão”, diz Mounk. Isso ainda é curioso. Quando Oliver Holmes criou a interpretação moderna da Primeira Emenda americana, com a sua máxima de que apenas discursos que apresentassem um “perigo real e presente” deveriam ser punidos, foi fundamentalmente a esquerda que defendeu a liberdade de expressão. Isto foi depois do fim da Primeira Guerra Mundial, em 1919, quando Holmes endossou o direito dos activistas comunistas de origem russa de defenderem a sua revolução e desafiarem o governo americano, colocando cartazes nas ruas de Nova Iorque. Hoje tudo parece ter mudado. A obsessão identitária diz o seguinte: não há divergência em jogo. Existe apenas uma competição entre o erro e a verdade. E o erro deve ser silenciado. Ponto final.

Talvez devesse ser assim. Se a verdade é de fato dada por alguma ordem cósmica, por que deveria o erro ser tolerado? Pensando nisso, me veio à mente uma das histórias mais curiosas que li. É o de Isabel, uma mulher católica que decidiu fazer uma oração perto de uma clínica de aborto em Birmingham, Inglaterra. Havia uma zona de exclusão para protestos no entorno da clínica e logo um policial se aproximou: “Vocês estão protestando?” ele perguntou. “Não”, respondeu Isabel, “só estou orando mentalmente”. Ela foi presa e o caso se espalhou pelo mundo. A acusação era que aquela oração silenciosa poderia ser uma espécie de “intimidação” às mulheres que abortavam. O caso foi parar no Parlamento, gerou amplo debate e, no final, Isabel foi absolvida. A promotoria não conseguiu provar o que exatamente estava acontecendo naquela cabeça. E como isso poderia ser uma forma de intimidação. Mas a imagem está lá. Lembrei-me da “crimeia”, o crime de pensamento da profecia de Orwell, no seu clássico 1984. Talvez tenha sido um erro do promotor não se aprofundar e descobrir o que havia naquela cabeça. Ou então tudo isto sugere um caminho perigoso, e o melhor seria regressar ao caminho daquilo que Mounk chama de “liberalismo filosófico”, com as suas ideias de respeito pela liberdade individual, igualdade perante a lei e liberdade de pensamento. Ideias que incomodam, que hoje vivem um pouco nas sombras. Mas estão inegavelmente na base daquilo que melhor podemos alcançar na modernidade.

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Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper

Os textos dos colunistas não refletem necessariamente a opinião de VEJA

Publicado em VEJA em 5 de julho de 2024, edição nº. 2900



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