Você já ouviu falar da “falácia de Davos”? É a simples ideia de que aqueles que ganham mais, estão entre os 1% mais ricos, são mais inteligentes. Achei esse conceito ótimo. Corresponde aproximadamente a uma certa mitologia em torno da meritocracia, segundo a qual “os melhores vão bem na vida”. A questão é um grupo de pesquisadores suecos que, no ano passado, publicou uma pesquisa mostrando que não é bem assim. Eles analisaram o sucesso de vida de 59 mil homens, comparando as suas capacidades cognitivas, medidas quando eram jovens, com o seu rendimento anual quando adultos. O resultado mostra que até um padrão de 60 mil euros, a capacidade cognitiva fez a diferença. Depois disso, muito pouco. O grupo de 1% do topo não tinha quase nada a ver com o grupo mais inteligente, se pensarmos em termos de capacidades lógicas e intelectuais. A busca termina com um mistério. O que causaria a desigualdade nos estratos de rendimento mais elevados? De onde viria o sucesso, se é que pode ser medido?
Uma hipótese trata do impacto das habilidades não cognitivas. Coisas como “motivação, sociabilidade, criatividade, disciplina mental e capacidade física”. Apelando um pouco para a filosofia, eu diria que nossos pesquisadores esqueceram de um item essencial: a sorte. Lembro-me de Hayek perguntando se alguém acha que “uma bela voz, um rosto bonito, uma mente poderosa” dependem de algum tipo de mérito moral. E quem sabe, coisas muito mais fortuitas. Nosso bilionário Eduardo Saverin, por exemplo, que um dia esbarrou em um nerd no dormitório da faculdade e lhe emprestou algum dinheiro. Um certo Zuckerberg. Sorte ou mérito? De minha parte, gosto de ver essa questão por outro ângulo: é realmente possível medir o sucesso de alguém usando a mesma régua? Renda, por exemplo? Eu não acho. Por uma razão simples: as pessoas são diferentes por razões que vão além das habilidades e da sorte. Eles também são diferentes por causa de suas diferentes preferências na vida. Há quem queira viver a vida de um Elon Musk, correndo riscos o tempo todo; e há quem queira a segurança de um bom emprego no Banco do Brasil. Há quem queira trabalhar oitenta horas semanais em uma startup, como vejo entre alguns dos meus ex-alunos, e há quem queira morar na Lagoa da Conceição, em Floripa, como fez um velho amigo. Ainda me lembro de quando decidi estudar história na faculdade. Muita gente me disse: não tem dinheiro. Na verdade, não poderia. Muito mais tarde li sobre a história de Jeff Bezos. Ele morou em Nova York, no mercado financeiro, mas em algum momento decidiu se aventurar. Ele achou que o mercado digital iria crescer e decidiu abrir a Amazon. Durante muitos anos ele vendeu e eu comprei livros, com meu salário de professor. O resultado é uma grande “desigualdade” entre nós dois. Mas a verdade é que, mesmo que pareça despeito, não faz muito sentido comparar o seu sucesso com o meu. Isso ocorre pelo simples fato de que nossos gostos de vida sempre foram muito diferentes. E que nós dois nunca competimos na mesma “corrida da vida”, como tantas vezes leio.
“É possível medir o sucesso usando a mesma régua?”
Há um erro na maioria das teorias sobre “desigualdade”. O erro de julgar o sucesso de pessoas, na sua enorme diversidade, com objetivos de vida diferentes, pelo mesmo governante. Em geral, por padrão de renda. Isso se aplica até mesmo a pessoas muito parecidas. Os professores Carlos e Roberto, por exemplo. Carlos desde muito cedo decidiu participar de um concurso e lecionar numa escola da periferia da cidade. Adequava-se ao seu gosto comunitário, ao seu total desinteresse em enriquecer. Tudo além de um emprego estável, sem risco de ser jogado na rua no final do ano. Bem diferente do Roberto, um cara inquieto, que passou anos fazendo mestrado, doutorado, concorrendo a bolsas fora do país, até se tornar professor em uma universidade bacana. No final, ele escreveu livros, tornou-se um cara conhecido e ganhou um bom dinheiro. Carlos e Roberto existem na vida real. O dia em que se conheceram em seu trigésimo aniversário. O encontro foi afetuoso, apesar da evidente “desigualdade” entre eles em termos de renda. Ou talvez também em termos de “notoriedade”. Mas é absurdo dizer que isso foi um problema. Ou que haveria alguma desigualdade de sucesso entre eles. Carlos e Roberto eram basicamente iguais num aspecto crucial: a realização humana. Ambos fizeram de suas vidas o que decidiram fazer. Eles simplesmente não estavam, em nenhum momento, participando da mesma corrida. Comparar essas coisas com base em algum critério abstrato, seja renda, poder ou notoriedade, é basicamente apenas um sutil desrespeito pela infinita variedade de fins e valores que felizmente marcam a experiência humana.
Além de não fazer muito sentido, há muitos danos colaterais nessa ideia de se comparar com a vida e o sucesso dos outros. Um deles é o risco de sempre se ver como um perdedor. Isto se dá pelo simples fato de que há muito mais espaço na imaginação humana do que na própria vida. E nada mais é do que uma tortura basear as nossas vidas num futuro passado. Pelo que poderia ser, mas infelizmente não é, se por acaso vivêssemos a vida do vizinho. A vida digital piorou essas coisas. “Não vivemos mais em pequenas comunidades”, gosta de provocar Jordan Peterson, “onde você poderia ser o melhor padeiro ou o melhor jogador de basquete”. Vivemos em um mundo em que o sucesso do Messi e daquele maldito colega de trabalho aparece com um clique, na sua frente, a todo momento. E não há muito que você possa fazer a não ser cuidar da sua própria cabeça.
Aqui volto aos meus dois personagens, Carlos e Roberto. Eles fizeram suas escolhas e obviamente produziram resultados muito diferentes. O que tinham em comum é o facto óbvio de que ambos tinham acesso a uma base comum de oportunidades. Pode ser estranho, mas é o mesmo para mim e Jeff Bezos. Uma base comum não significa “igualdade de oportunidades”, porque isso não existe. E não existiria mesmo se fôssemos irmãos siameses. A sociedade deveria se preocupar, eu diria obsessivamente, com isso: a ideia de oferecer a todos uma boa base de oportunidades. Semelhante a que Carlos e Roberto tiveram que fazer suas escolhas. Sobre os destinos humanos, sobre os rendimentos que cada um terá, sobre o fato de eu ser professor e Bezos navegar no espaço, tudo isso deveria pertencer ao exercício imensurável da liberdade humana. A nível individual, a conclusão de Jordan Peterson é válida: esqueça o sucesso dos outros. Ou talvez aprenda algo com ele. Além disso, procure “comparar-se com o que você era ontem, e não com o que outra pessoa é hoje”.
Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper
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Publicado em VEJA em 22 de novembro de 2024, edição nº. 2920
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