Uma das crenças mais arraigadas do nosso tempo é que tudo está sempre melhorando. É uma crença bem fundamentada. A mortalidade infantil caiu 51% só desde o ano 2000, e a esperança de vida passou de 52 anos em 1960 para 74 anos agora. No Japão já chega aos 85 anos e li que podemos ter chegado a um limite. O fato é que tudo parece estar indo muito bem. Mas há uma névoa: por alguma razão, as taxas de felicidade têm diminuído. É o que diz o Relatório Mundial da Felicidade, relatório realizado pela Universidade de Oxford em 140 países. O estudo relata uma “queda substancial na felicidade entre os mais jovens, especialmente na Europa e na América do Norte”.
Muitas pessoas associam isto a acontecimentos como o aquecimento global, o “preconceito” ou a desigualdade. Bobagem. O mundo não era substancialmente melhor em algum lugar no passado. A explicação parece-me diferente e foi-me dada pela Dra. Ana Lembke, autora de Nação Dopaminacom quem conversei esses dias. “É a sobrecarga”, diz ela. Seu conceito mais fascinante é o “paradoxo da abundância”. Algo parecido: temos acesso fácil a quase tudo. É ótimo, mas facilmente perdemos o controle. “Nossos cérebros evoluíram para lidar com a escassez”, diz Lembke, “não com a abundância”. Para aqueles que acham que isso não é um problema, sugiro a leitura de Jonathan Haidt e seu A geração ansiosa. A mesma coisa está acontecendo com nossos adolescentes, só que de forma muito mais séria. São quarenta horas por semana de dopamina barata, através de telas e smartphones. É uma espécie de epidemia. Do qual, sejamos honestos, ninguém está perfeitamente livre.
Ninguém sabe realmente o que é felicidade. A melhor frase que ouvi sobre o assunto veio de Contardo Calligaris: “Não quero ser feliz, quero uma vida interessante”. O que entendi foi o seguinte: não que Contardo não quisesse ser feliz. Ele simplesmente não acordava todos os dias pensando nisso. Pensei em fazer bem, em ser um bom psicanalista, em inventar atividades desafiadoras. E aceitar que a vida tem a sua dose de sofrimento, com a qual temos muito que aprender. Afinal, a felicidade veio como uma bênção. Excelente. Meu objetivo é observar como já lidamos com ideias muito diferentes sobre o que é uma vida interessante. O século XIX cultivou o fascínio pela vida heróica. A vida é intensa e eventualmente curta. Quem sabe, talvez à imagem de Napoleão. Stendhal retratou quase perfeitamente esta ideia, com Julien Sorel, seu herói em O Vermelho e o Preto. O cara que veio de baixo, que apanhou do pai, e sonhou com a glória, no Exército ou na Igreja.
“Seja grato se a vida lhe der algo que você chama de felicidade”
No século 20, o herói saiu de cena e a civilização do bem-estar entrou lentamente em cena. O mundo do “homem massa”, descrito por Ortega y Gasset. Do tipo que se diverte, anda pelas grandes feiras de Paris e acha que o mundo nasceu meio preparado. Na literatura, lembro-me de Philip Carey, o mocinho, personagem de W. Somerset Maugham em Servidão Humana. O tipo que tenta de tudo, que vai aos extremos da paixão, desce ao quinto do inferno e escolhe o longo caminho. Um bom casamento, uma profissão honesta e um certo desencanto, dado pela ideia de uma vida longa e prazerosa. Tudo o que teria horrorizado Lord Byron. Ou Oscar Wilde, a quintessência de um mundo que ficou para trás. O que estamos vivenciando são as dores crescentes da sociedade do bem-estar. Este é o paradoxo da abundância. Avanços tecnológicos, economia compartilhada progresso, a China vende cada vez mais carros elétricos e gadgets, há mais canais para assistir a qualquer coisa. Tudo ótimo, mas há um custo. Na verdade, há uma curva. Durante muito tempo, acalentamos a ideia de que ter mais liberdade e alternativas levaria a ganhos contínuos de bem-estar. E, em breve, mais felicidade. É verdade, em muitos casos. Se você mora em uma região isolada e a melhor opção de lazer é assistir a um programa na TV aberta, é possível imaginar que ganhará se num passe de mágica ele for levado à Broadway, em Nova York. A questão é que o paradoxo surge aí mesmo. Há um custo nas escolhas. Há uma sensação de perda com os não escolhidos. E a sensação (geralmente ilusória) de que as escolhas feitas pelos outros foram melhores que as nossas.
Daniel Kahneman e Angus Deaton mostraram em pesquisas como até o dinheiro atende a essa lógica. Mais dinheiro realmente traz felicidade. Mas apenas até certo ponto. A partir de um rendimento anual próximo dos 75 mil dólares, não haveria ganhos mais relevantes em bem-estar. Também se aplica a quem tem pouco. E é disso que trata o nosso recente drama sobre apostas esportivas. Gastar alguns dólares em apostas é apenas mais uma opção de diversão barata. E não passa de uma ilusão imaginar que o nosso bom leviatã controlará tudo o que as pessoas fazem com o seu dinheiro. Quando leio sobre essas coisas, lembro-me de Madame Bovary. Muita tinta já foi derramada para identificar a personagem de Flaubert como histérica, como uma mulher oprimida e até como uma “indecente”, pelo que o próprio Flaubert foi processado. De minha parte, gosto de ver Bovary como alguém que em algum momento perdeu a corrida com a própria imaginação. O mundo dos romances e suas infinitas possibilidades, por um lado, e a vida real, com suas misérias, por outro. E, a partir daí, a perda de controle. A fábula de Flaubert é uma antecipação. Quando penso nos índices de suicídio, que cresceram muito nos últimos anos, principalmente entre os adolescentes, a ideia surge com força. Há uma sombra de Madame Bovary na nossa cultura do excesso.
Não há solução coletiva para tudo isso. O governo pode limitar as apostas, mas isso não é nada. E podemos sair por aí murmurando que precisamos “regular as redes”, mas isso também não quer dizer nada. O excesso não é crime, mas sim uma sedução. É aí que reside o nosso problema. Ninguém produzirá uma vida boa se não for capaz de criar restrições, por si só, à lógica da abundância. Se você não descobrir o ponto exato da curva onde tudo que é imensamente positivo vai para o vermelho e leva a um caminho sem volta. Há muita literatura sobre como retomar o controle. Limite os nossos campos de interesse, evite o devaneio da comparação com os outros. E, principalmente, cultivar uma vida offline. E talvez lembre-se de uma antiga lição de Voltaire, no final de Sincero. Aquela cena com o velho turco dizendo à trupe cansada que não há problema em querer muitas coisas e saber o que está acontecendo em Constantinopla. Mas é preciso “cultivar o seu próprio jardim”. Basicamente, é a lição de Contardo. Procure viver uma vida interessante, com dores e limites bem estabelecidos. E, se em algum momento a vida te der algo que você possa chamar de felicidade, agradeça. Faça um brinde discreto, com a leveza de uma noite. E seja grato.
Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper
Publicado em VEJA em 18 de outubro de 2024, edição nº. 2915
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