Natália Viana
Agência pública
As eleições nos Estados Unidos trouxeram Donald Trump de volta à presidência. Em janeiro de 2025, o republicano toma posse para o seu segundo mandato depois de derrotar com folga a democrata Kamala Harris, num resultado que contradiz as previsões de uma disputa acirrada. O regresso de Trump levantou o alarme sobre o fortalecimento da extrema direita e a estratégia destes movimentos para atrair o público.
Para falar sobre o fenômeno, Pauta Pública conversou com Paolo Demuru, pesquisador e doutor em semiótica pela Universidade de Bolonha, na Itália, e pela Universidade de São Paulo (USP). É autor do livro Política de encantamento: extrema direita e fantasias de conspiração, publicado pela Elefante.
Demuru analisa o ressurgimento de líderes populistas de extrema direita como Trump e observa que, para além dos EUA, há uma tendência global destes movimentos, refletida em figuras como Matteo Salvini (Itália), Marine Le Pen (França) e Pablo Marçal ( Brasil). Segundo ele, este fenómeno é reflexo do desencanto generalizado com o sistema neoliberal, que aprofunda as desigualdades e cria um ambiente propício ao crescimento de discursos que desafiam o status quo.
“São figuras capazes de influenciar muitas pessoas que não seriam ou não se consideravam extremistas”, explica Demuru. Segundo ele, esses líderes conseguem unir discursos muito diversos, como religiosos, espirituais e até narrativas de bem-estar e cuidado. “As fantasias conspiratórias são construídas a partir de pequenos núcleos de verdade que evidenciam a dureza do mundo capitalista e neoliberal em que vivemos, um mundo extremamente desigual, onde o lucro de poucos é privilegiado em detrimento do bem-estar da maioria .”
Pesquisador analisa o ressurgimento de líderes de extrema direita como Donald Trump
afp
Paolo, no seu livro, você diz que “o populismo conspiratório de extrema direita seduz menos pelos seus argumentos e mais pelo fascínio que provoca. Cativa porque é um discurso maravilhoso, extático, extraordinário, verdadeira magia política. Você pode falar um pouco sobre isso? Por que as narrativas de conspiração, propagadas principalmente por figuras de extrema direita, prosperaram tanto nos últimos anos?
O que eu queria destacar neste livro era precisamente a capacidade do discurso conspiratório de extrema direita de provocar encantamento. Isso tem a ver com o momento político que estamos vivendo, que é muito difícil. Como sempre digo, as fantasias conspiratórias são construídas a partir de pequenos núcleos de verdade que deixam evidente a dureza do mundo capitalista e neoliberal em que vivemos, um mundo extremamente desigual, onde o lucro de poucos é privilegiado em detrimento do bem-estar . da maioria. [Esses núcleos de “verdade”] decorrem, por exemplo, do facto de existir uma elite económica de grandes multimilionários que realmente detém o poder. Este é um núcleo de verdade. Uma teoria, como a do globalismo ou da nova ordem mundial, dos Illuminati, baseia-se neste núcleo. Então, a partir dela, cria-se toda uma narrativa absurda, muitas vezes completamente irreal. Mas insistir nesta dicotomia, de que existe um grupo de pessoas poderosas, é eficaz porque parte de algo muito concreto e visível. A partir daí surgem explicações fantasiosas que, além de fornecerem uma resposta simples a uma questão complexa, oferecem algo que o próprio sistema capitalista neoliberal muitas vezes nos priva, especialmente aqueles em situações extremamente precárias de pobreza: o espanto. Precisamos também de contato, de encantamento, de sonhos. Numa vida tão dura, onde muitos são obrigados a viver em condições quase análogas à escravatura, esta narrativa torna-se extremamente atrativa. Oferecer essas histórias traz respostas e, ao mesmo tempo, encanta – e encanta por diversos motivos. Posso explicar isto brevemente: é emancipador, de um certo ponto de vista, tanto para o indivíduo como para o colectivo. Digo isso porque o encantamento ocorre quando a pessoa descobre um “grande segredo” por trás da realidade concreta do dia a dia. Existe esta grande seita de pessoas poderosas que favorecem as elites globais, permitindo a migração através das fronteiras, ameaçando a minha nação e a identidade nacional. Este tipo de construção inimiga tem especificidades em cada país. Além da admiração individual, compartilhar esse segredo com outras pessoas cria pertencimento. A narrativa conspiracionista funciona, como digo no livro, como uma grande caça ao tesouro.
Você acha que essas narrativas e a forma como são contadas, especialmente nas redes sociais, estão remodelando a forma como a política é feita e a própria democracia? Pensando nas últimas eleições municipais, com Pablo Marçal, mas agora com Donald Trump, também com Jair Bolsonaro. Como você vê isso?
Temos visto, nos últimos anos, uma mistura entre a linguagem das redes sociais e o discurso político como um todo. É como se, de certa forma, a linguagem das redes sociais tivesse moldado o discurso político. Então, práticas discursivas, narrativas, que eram típicas das redes, como, por exemplo, a indireta, a gritaria, tornaram-se marcas do discurso político como um todo, até porque a grande plataforma onde o discurso político acontece, acontece, são as redes. Isso também aparece em comícios, como o “fencedinho” ao vivo de Bolsonaro. Nos debates televisivos de Marçal, claramente concebidos para produzir cortes, baseiam-se nestes estratagemas. Ou, por exemplo, até mesmo imprecisão semântica [isto é, de sentido]implícito na indireta que você faz ao postar um comentário ou postar nas redes sociais sem indicar exatamente a quem você está se referindo e, portanto, gerando essa ambiguidade. São estratégias discursivas que moldaram o campo político como um todo. Fala-se muito sobre a estrutura algorítmica. Estamos quase cansados de saber quão séria é a questão, digamos, da arquitetura de rede. Mas, do meu ponto de vista, é preciso refletir sobre essas práticas discursivas que muitas vezes têm sido um tanto negligenciadas, principalmente na grande mídia.
Qual é o papel de pessoas como Steve Bannon nesta “magia política”? Lembrando que Bannon veio do cinema, assim como Goebbels na época de Hitler, que também utilizou o cinema como nova mídia, assim como Bannon faz hoje com as redes sociais. Qual o papel dessas pessoas e do campo estético na manipulação da narrativa, da imagem, distorcendo a realidade, incutindo raiva e revolta na política de hoje?
Bannon desempenhou um papel fundamental na construção daquilo que ele próprio definiu como uma internacional populista de extrema-direita, apesar de não utilizar propriamente esse termo. Esse movimento envolveu líderes como Bolsonaro, Trump, Matteo Salvini, na Itália, Le Pen [França]Orbán [Hungria]entre outros. Como você mencionou, ele veio do cinema e da publicidade. Bannon desenvolveu uma espécie de cartilha que influenciou também figuras como Olavo de Carvalho e a família Bolsonaro.
Ele construiu um edifício discursivo, amplificado pela própria estrutura algorítmica das plataformas, especialmente no X (Twitter), que Elon Musk levou a outro nível. Promoveu narrativas eficazes para criar pertencimento à direita, construindo paixões como o ódio e a raiva dirigidas a grupos específicos, como imigrantes na Europa, afro-americanos, LGBTQIA+, entre outros. Um livro que ilustra bem a lógica e as táticas de Bannon é The Engineers of Chaos, de Giuliano da Empoli, que descreve os fundamentos organizacionais deste projeto. Outro exemplo relevante é o livro Doppelgänger de Naomi Klein, que detalha como Bannon se tornou uma figura influente para muitas pessoas que não se considerariam extremistas.
Algo crucial que Bannon fez foi unir diferentes universos discursivos, construindo convergências entre o discurso extremista, religioso e espiritual (não necessariamente cristão, mas com práticas da Nova Era), e o campo do bem-estar e da cura corporal. Durante a pandemia, chegou a vender vitaminas e suplementos, promovendo teorias conspiratórias absurdas.
Esta ligação é muito perigosa, pois constrói uma ponte entre campos que oferecem respostas individualistas, onde o coletivo nunca é pensado. “Eu me cuido”, ou seja, o bem-estar como cura do próprio indivíduo. Essa junção entre a cura do corpo, a espiritualidade no sentido mais amplo e a política baseada no ódio é poderosa. Precisamos ter cuidado com isso.
Esta entrevista foi produzida pelo órgão público e publicada em parceria com o Estado de Minas. Leia mais em apublica.org
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