Num mundo marcado por divisões e tensões geopolíticas, o Pacto para o Futuro, que deverá ser adotado pelos líderes mundiais na ONU em 22 de setembro, propõe a intensificação do uso da diplomacia e da mediação para lidar com ameaças à paz.
Um dos principais exemplos de estabilização bem sucedida por parte da ONU vem de Timor Leste, um contexto que foi marcado por 24 anos de conflito durante a ocupação indonésia e violentas crises internas após a independência. Com o apoio das Nações Unidas, a pequena nação asiática alcançou a autodeterminação e a pacificação.
Combatendo o divisionismo
Para superar divisões e outras questões, Timor-Leste investiu na reconciliação, uma experiência que pode inspirar esforços globais de paz e segurança noutros contextos. Por isso, numa recente visita ao país, o Secretário-Geral da ONU, António Guterres, afirmou que “o mundo tem muito a aprender” com a experiência timorense.
Entre 1999 e 2012, Timor-Leste acolheu seis missões da organização, quatro das quais eram de manutenção da paz e as outras duas eram políticas. A nação asiática vive sob o lema “conflito nunca mais, bem-vindo o desenvolvimento” e trabalha para enviar cada vez mais soldados timorenses para missões de estabilização em todo o mundo.
Numa entrevista à ONU News, em Díli, o primeiro-ministro do país disse estar grato por “todo o esforço da comunidade das nações no envio de forças de manutenção da paz para responder às necessidades”. Xanana Gusmão, que liderou a resistência timorense, disse que durante os anos de guerrilha nas montanhas acompanhou as notícias sobre as missões de manutenção da paz das Nações Unidas noutros países através de uma pequena rádio.
Destacou os esforços para acabar com a divisão entre o povo timorense e a iniciativa de criação do g7+, um grupo de nações frágeis em conflito ou pós-conflito, para partilhar experiências de diálogo e reconciliação. Numa reunião virtual realizada pelo líder da ONU na semana passada, Gusmão lembrou que várias propostas do g7+ foram incorporadas na “Nova Agenda para a Paz” das Nações Unidas.
Missões “de maior sucesso na história da ONU”
Em declarações à ONU News, o antigo major Luis Pinto, antigo soldado da paz, disse que a situação timorense era “muito má” em 1999, quando a Missão das Nações Unidas em Timor-Leste, a Unamet, conduziu o referendo de autodeterminação. A escolha de 78,5% dos eleitores pela independência foi confrontada com ataques brutais por parte de milícias que queriam a integração com a Indonésia.
O militar recorda a chegada da Força Internacional para Timor-Leste, a Interfet, aprovada pelo Conselho de Segurança em Setembro de 1999 para conter a crise. Disse que a grande contribuição daquela missão para a estabilidade do país o fez querer trabalhar também em missões de paz da ONU. Ele realizou este sonho em 2013 e 2014, quando serviu como observador militar no Sudão do Sul.
Pinto considera que “Timor-Leste nasceu das Nações Unidas” e que as missões no país foram as “de maior sucesso na história da ONU”. Acredita que agora é o momento de o país retribuir e destacou a experiência dos soldados timorenses no diálogo e na reconciliação.
Pinto disse que durante a luta pela liberdade, os combatentes timorenses desenvolveram simultaneamente competências militares e políticas. Hoje, aspiram levar esta capacidade de criar diálogo entre as partes para outros contextos de conflito, com a “mentalidade de que o ser humano é mais importante do que qualquer interesse”.
Potencial para contribuir mais
Timor-Leste já enviou oficiais para missões da ONU no Kosovo e no Líbano. Desde 2011, o país conta com dois cargos de observação militar no Sudão do Sul, atualmente ocupados pelos majores Zequito Ximenes e José Augusto Martins.
Numa entrevista, Ximenes afirmou que testemunhar os benefícios da manutenção da paz em Timor-Leste foi um “factor significativo” na sua decisão de se tornar um soldado da paz. Ele diz que foi motivado pelo desejo de contribuir para missões semelhantes e “fazer a diferença em regiões afetadas por conflitos”.
Martins elogiou o impacto das forças das Nações Unidas em Timor-Leste, destacando que consolidaram a estabilidade e reforçaram “uma cultura de boa governação, facilitando o diálogo público”. Ele incentivou seus compatriotas a desenvolverem habilidades e conhecimentos para ajudar outras pessoas necessitadas.
Desde 2018, Timor-Leste dispõe de um Centro de Formação em Operações de Manutenção da Paz focado na preparação de militares e militares para missões da ONU. Segundo o director do centro, major Antão Caludino, o país está preparado para enviar mais soldados da paz para trabalhar em áreas como salvamento e protecção.
Disse que já estão treinadas duas tropas de infantaria e que as Forças de Defesa de Timor-Leste, F-fdtl, pretendem preparar uma empresa de engenharia, que possa trabalhar na construção de estradas e escolas. Segundo Claudino, um dos objetivos do programa é reforçar a participação das mulheres.
As F-Fdtl surgiram em 2001, depois de ter incorporado o aparelho militar das Forças Armadas de Libertação Nacional de Timor-Leste, as Falintil, principal força de resistência à ocupação indonésia, que operava através de guerrilhas nas montanhas.
Direito internacional e segurança
A dissolução das Falintil ocorreu durante a Untaet, a missão da ONU responsável pela administração de Timor-Leste durante a transição para a independência. Um dos objectivos da Untaet era a manutenção da lei e da ordem e a criação de instituições, especialmente as do poder judicial e da polícia, para garantir o Estado de direito.
Cerca de 1.300 policiais internacionais, inicialmente conhecidos como Civpol e mais tarde como Unpol, foram destacados na época.
A policial timorense Natércia Martins juntou-se à Civpol e afirma que a missão teve um grande contributo, pois aplicou regulamentos internacionais em Timor-Leste numa altura em que o país ainda estava a desenvolver as suas próprias leis. Disse que isto era importante para garantir a segurança das pessoas no município de Ermera, onde trabalhava.
Inspiração para um jovem policial
Alguns anos antes, nesse mesmo município, Natércia atuou na seleção da Unamet. No dia do referendo, ela, que tinha 19 anos, foi responsável por verificar a lista de inscritos para votar. Nessa data, o centro onde trabalhava foi atacado por milícias, deixando dois funcionários nacionais mortos por facadas e obrigando as equipas da ONU a evacuar a região.
Na onda de violência que tomou conta do país em setembro de 1999, sua prima, Ana Lemos, foi morta a tiros, tornando-a uma das 14 funcionárias da Unamet mortas no país, a única mulher. Lemos foi homenageado com uma sala no complexo da ONU em Timor-Leste, inaugurada pelo secretário-geral em setembro de 2024.
Natércia disse que a força da prima a inspirou a ingressar na polícia e depois na Civpol, para “garantir vidas mais seguras às pessoas, especialmente mulheres e crianças”. Segundo ela, a presença das missões de paz da ONU fez com que toda a população timorense “se sentisse muito segura para recuperar uma vida normal”, depois do trauma da perda de entes queridos e propriedades na crise pós-referendo.
Crise interna em 2006
Após a independência, a Untaet foi substituída pela Missão de Apoio das Nações Unidas a Timor-Leste, Unmiset, e pelo Escritório da ONU em Timor-Leste, Unotil.
Apesar da estabilidade alcançada e da criação de instituições importantes, em 2006 uma crise política interna abalou o país. A situação levou a confrontos que deslocaram mais de 150 mil pessoas.
Eles haviam perdido suas casas e procuravam lugares seguros para se refugiarem da violência. Um desses locais foi o Convento das Madres Canossianas, em Balide, na capital Díli, que albergou 23 mil pessoas.
Irmã Guilhermina, responsável pelo local na época, disse que havia “tiroteios por toda parte e as pessoas tinham muito medo”. Ela conta que quando abriu os portões para receber as pessoas, pensou que seria apenas por algumas horas, mas a situação durou dois anos e nove meses.
“Não há mais inimigos entre nós”
A freira afirmou que o país não estava preparado para aquela crise e que era inimaginável que os timorenses pudessem matar-se entre si após o processo de independência.
Numa ocasião em que grupos armados invadiram o convento em busca de inimigos, Irmã Guilhermina lembra que respondeu “somos todos timorenses, somos filhos de Deus, não há mais inimigos entre nós”. Ela então disse para quem a ameaçou: “rapaz, pega a arma com a mão esquerda e levanta a mão direita, vamos rezar” e o convenceu a ir embora.
Em muitas outras ocasiões, a freira contou com o apoio das forças de manutenção da paz da ONU para garantir a segurança do local. Os boinas azuis realizaram a vigilância, evitando ataques externos, mas também internos, por parte de alguns refugiados.
Na altura, o Conselho de Segurança tinha enviado a Missão Integrada das Nações Unidas em Timor-Leste, Unmit, para conter a crise e trabalhar com todos os segmentos da sociedade, desde a polícia e forças armadas até ao Parlamento Nacional, para criar estabilidade e instituições resilientes. empresas estatais.
Guilhermina disse ter testemunhado que “através do diálogo, as Nações Unidas sempre procuraram uma intervenção pacífica entre os timorenses”. As pessoas deslocadas por ela abrigadas também receberam apoio de agências da ONU para assistência médica e alimentar, bem como água e saneamento.
Reconciliação em vez de retaliação
Entre 2006 e 2012, todos os anos, o mandato da Unmit foi traduzido numa componente policial das Nações Unidas composta por 1.600 membros de 44 países. Para o chefe de Comunicação Estratégica do Departamento de Operações de Manutenção da Paz da ONU, esta “manifestação física do compromisso de todo o mundo” mostra como é possível que a manutenção da paz faça uma diferença real.
Nick Birnback considera que Timor-Leste é um grande exemplo de sucesso e “motivo de orgulho”, tendo passado de país anfitrião de operações de paz a nação que agora contribui para estas missões.
Com o empenho dos timorenses e o apoio da comunidade internacional, a partir de 2011, a Polícia Nacional passou a ser responsável pelo policiamento em todo o país, sem grandes violações da lei e da ordem e com eleições pacíficas desde então. Em 2012, a Unmit encerrou as suas atividades e a ONU continua a apoiar o país através das suas agências em diversas questões ligadas ao desenvolvimento sustentável.
Nesta longa jornada, os líderes timorenses priorizaram a reconciliação nacional, para evitar uma guerra civil, e a normalização das relações com a Indonésia, em vez da retaliação. Estas escolhas, aliadas ao apoio da comunidade internacional, fizeram do país uma referência na estabilização pós-conflito e mostram um caminho possível para superar os grandes desafios atuais de paz e segurança.
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