Em julho de 1553, o então rei da Inglaterra, Eduardo VI (1537-1553), morreu adolescente, sem herdeiros. Com a saúde debilitada, o primeiro monarca protestante nomeou como sua sucessora, em detrimento de suas meias-irmãs, Elizabeth e Mary Tudor, sua prima Jane Gray (1537-1554) — que compartilhava da mesma fé que ele e foi uma das mais educado em seu tempo. Jane foi coroada, mas não durou no trono: seu reinado durou apenas nove dias, quando acabou sendo deposta pela católica Mary Tudor (1516-1558) e seus apoiadores. Meses depois, a jovem de 17 anos foi declarada traidora e decapitada junto com o marido, enquanto Maria I reinou até sua morte, aos 42 anos, período em que proibiu o protestantismo. “Jane poderia ter sido a líder de que a Inglaterra precisava. Em vez disso, ela é lembrada como uma donzela em perigo. E se a história tivesse sido diferente?” pergunta o primeiro episódio de Minha senhora Jane, uma série de romance e fantasia lançada pelo Prime Video da Amazon. A trama é baseada em uma versão alternativa da história da dinastia Tudor: aqui, Jane (Emily Brader) não foi derrotada por Maria I (Kate O’Flynn) e ela e Eduardo VI (Jordan Peters) estão vivos e bem, um destino que coloca o jovem como agente de unificação do reino.
Minha senhora Jane – Brodi Ashton, Cynthia Hand, Jodi Meadows
Com toques anacrônicos, a produção, inspirada no livro homônimo do trio Brodi Ashton, Cynthia Hand e Jodi Meadows, é o exemplo mais recente de um campo especulativo que olha o passado com os olhos do presente, traçando paralelos realidades que poderiam – com maior ou menor probabilidade – aparecer nos livros de história se eventos notáveis tivessem se desenrolado de forma diferente. Via de regra, são tramas que criam vidas inexistentes para figuras reais, mas pouco conhecidas, ou tentam responder perguntas sem resposta, especulando cenários que adviriam, por exemplo, de uma vitória nazista na Segunda Guerra Mundial ou da prevalência de comunismo na Segunda Guerra Mundial. Frio.
O Homem do Castelo Alto – Philip K. Dick
Nessa linha, a série Apple TV + Para toda a humanidade, renovada pela quinta temporada, assume que os soviéticos chegaram à Lua antes da Apollo 11 americana, desencadeando uma corrida espacial sem fim entre os dois países. A plataforma também anunciou recentemente a série spin-off Cidade estrela, que observará a vida de pessoas que, nesta realidade paralela, fizeram parte da missão soviética que colocou o primeiro homem no satélite da Terra. Em alta na TV, tramas desse tipo têm antecedentes notáveis na literatura: nome de destaque nesse exercício imaginativo, Philip K. Dick (1928-1982) desenhou o clássico O Homem do Castelo Alto (1962) um mundo em que os países do eixo derrotaram os aliados. O livro é inspiração para a série homônima de quatro temporadas lançada em 2015 pela Prime Video: na trama, os Estados Unidos viam uma nação parcialmente dominada pelos nazistas, com o território dividido entre Alemanha e Japão.
Conspiração contra a América – Philip Roth
Em 2020, ideais supremacistas ressurgiram na trama com tom premonitório A conspiração contra a América. Baseada no clássico monumental homônimo de Philip Roth (1933-2018), a série da HBO propõe um cenário em que os Estados Unidos abraçam o fascismo e elegem o aviador antissemita Charles Lindbergh (1902-1974) —contrariando a participação do país na Segunda Guerra Mundial e entusiasta de Adolf Hitler — para a Presidência no lugar de Franklin D. Roosevelt (1882-1945), em 1940.
Para toda a humanidade – Harry Hurt
O exercício criativo baseado no “e se” tem a louvável função de alertar em meio à incerteza política. E se o presidente americano for um líder extremista? Qualquer aceno a Donald Trump e à sua trupe não é mera coincidência. Na série mencionada, são claros os perigos daqueles que perseguem as minorias políticas e étnicas. Minha senhora Jane segue a mesma ideia, mas com um visual mais jovem. Parte da história do enredo de época seria impossível no mundo real, pois se passa em um universo em que uma parcela da população tem o poder de se transformar em animais. Esses mutantes são perseguidos e queimados na fogueira – uma metáfora não tão sutil para o racismo e a inquisição. Se Jane tivesse sobrevivido, ela teria defendido os católicos como iguais aos protestantes? Uma pergunta sem resposta, mas que, na série, oferece entretenimento e a ideia de que, seja qual for o caminho percorrido, o mundo que respeita as liberdades individuais é sempre o melhor para se viver.
Publicado em VEJA em 28 de junho de 2024, edição nº. 2899
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