Nasci completamente cega por causa do glaucoma, mas desde muito cedo soube que queria ser cantora e atriz. Minha mãe conta que, quando eu tinha 2 anos, voltei da sala de cirurgia oftalmológica cantando, ainda sob efeito da anestesia. No total foram 17 operações, todas para controle da pressão intraocular, pois meu quadro é irreversível. A inclusão das pessoas com deficiência, portanto, sempre foi uma questão essencial na minha vida. Nas eleições municipais deste ano, pela primeira vez, as urnas eletrônicas terão voz humanizada – a minha voz – para ajudar 224.805 eleitores com deficiência visual a votar, facilitando a compreensão do nome do candidato, garantindo um voto secreto e seguro para todos.
Alcançar esta vitória, porém, não foi fácil. Nasci em Volta Redonda, interior do estado do Rio de Janeiro, em uma família musical. Meu pai e minha mãe, já aposentados, sempre me incentivaram a cantar. Existe uma teoria científica que explica que, quando uma pessoa perde um dos sentidos por uma incapacidade do próprio órgão, a parte do cérebro que cuidaria desse sentido não fica inativa, ela se reorganiza para cuidar dele. outros sentidos. Em relação à música, porém, não é garantido que um cego desenvolva maior musicalidade, mas, no meu caso, dois fatores se juntaram: fui estimulado desde cedo em casa e sempre tive inclinações musicais. O mesmo não aconteceu na escola. Em uma delas, fui simplesmente expulso porque a diretoria não queria mais atender alunos com deficiência. Nos cursos de teatro que fiz também fui afastado “para não me machucar”. A cegueira nunca me impediu. Comecei a cantar em corais e festas ainda adolescente e fui aceito no coral municipal. Em 2003 ganhei um prêmio nos Estados Unidos que me abriu muitas portas. Desde então, viajei pelo mundo participando de festivais na Itália, Argentina, Turquia, Suécia, Inglaterra e, recentemente, na Tailândia, onde fui sozinho e sem companhia. Em 2015 tomei outra grande decisão ao me mudar para o Rio de Janeiro, onde também moro sozinho. A tecnologia sempre foi uma grande aliada, com celulares capazes de ler etiquetas e até avisar se as luzes estão acesas. Mas ainda faltavam as urnas eletrônicas.
Em 2017, fui escolhido pelo projeto de acessibilidade chamado RH Voice, disponível gratuitamente na internet, para gravar a nova voz dos leitores de tela do Brasil, que são aqueles recursos utilizados por cegos para saber o que está na tela dos smartphones ou computadores. Antes, essas vozes eram ruins e pareciam robóticas. Foi difícil de entender. O processo de gravação foi difícil porque era impossível memorizar o texto inteiro (foram 30 horas de gravação), composto por frases curtas e aleatórias de livros e jornais. Precisei ouvir o texto nos fones de ouvido com um pequeno atraso para repeti-lo, pois, obviamente, não conseguiria lê-lo no papel. Após a gravação, as frases que gravei foram utilizadas para treinar uma inteligência artificial em fonemas e timbres vocais. O TSE então integrou o recurso à urna eletrônica para falar o nome, partido e número de todos os candidatos do país em um fone de ouvido. Além de ser uma vitória da democracia, é também uma vitória das pessoas com deficiência visual. A voz, chamada Letícia, que é meu segundo nome, poderia ter sido gravada por uma dubladora vidente, mas ao me escolher demonstramos que também somos capazes. Atualmente estou em exposição em São Paulo, na Unibes Cultural, com o Show no Escuro, onde convido o público a vivenciar, por pelo menos uma hora, minha realidade. É uma grande oportunidade para as pessoas desenvolverem uma consciência musical sem visão. Não adianta esperar que as coisas mudem, precisamos também ser agentes dessa mudança.
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