Na virada do ano, as emendas parlamentares provocaram mais uma vez uma luta entre os poderes. O governo apressava-se a aprovar projectos prioritários, como os regulamentos da reforma fiscal e o novo pacote fiscal. Sem maioria no Congresso, dependia do apoio de deputados e senadores de centro e direita, que condicionaram a votação dos textos à liberação de recursos por eles indicados para seus redutos eleitorais. Negociados os termos da transação, o Palácio do Planalto pagou quase 6 bilhões de reais em apenas um dia e, assim, obteve a ajuda necessária para triunfar nos plenários da Câmara e do Senado. O fluxo de recursos parecia ter sido restabelecido — e a relação entre as partes, pacificada — até que o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Flávio Dino voltou à acusação para tentar, mais uma vez, acabar com o que chamou de “o auge da confusão orçamentária”: a divulgação de emendas sem transparência, efetividade e, em alguns casos, sob fortes suspeitas de apropriação indevida de recursos públicos. Em decisões tomadas após o início do recesso Legislativo, Dino suspendeu o desembolso de cerca de 4 bilhões de reais em emendas de comissão e repasses previstos para quinze organizações não-governamentais.
Em ambos os casos, o ministro alegou que uma alteração só poderá ser paga se for identificado o parlamentar responsável por ela, bem como a prefeitura ou o governo do estado beneficiado, a empresa ou entidade contratada para a execução do serviço, além do projeto em que os recursos serão aplicados. O caminho do dinheiro, do início ao fim, deve ser conhecido. Ou rastreável. É uma exigência constitucional, mas os congressistas sempre se recusaram a cumpri-la. Nos últimos anos, deputados e senadores passaram a controlar fatias cada vez maiores do Orçamento na forma de emendas (veja na foto) e, ao mesmo tempo, instituíram mecanismos contrários à transparência, como o famigerado orçamento secreto. Na campanha de 2022, Lula prometeu acabar com o partido, mas, sem poder político, nada fez. Indicado pelo presidente para o STF, Dino entrou então em cena. Em meados do ano passado, o ministro suspendeu o pagamento de diversas formas de emendas porque, entre outros motivos, investigações da Polícia Federal, corporação a ele subordinada antes de assumir o cargo, reuniram indícios de esquemas de peculato alimentados por emendas. .
A questão, antes restrita ao respeito aos princípios constitucionais, tornou-se cada vez mais uma questão policial. Impactado por um “ciclo de denúncias” e “malas de dinheiro apreendidas em aviões, cofres, armários ou jogadas pelas janelas”, Dino designou uma equipe de seu gabinete para cuidar dos inquéritos sobre políticos e determinou que a PF, liderada por Andrei Rodrigues, que investiga, por exemplo, a tentativa de lideranças partidárias de assumirem a paternidade das emendas das comissões, para ocultar os nomes dos verdadeiros autores de cada centavo indicado por essas comissões. “Conhecemos os nomes de todos os nossos clientes VIPs e famosos”, disse um ministro do STF a VEJA, que pediu para não ser identificado. Sob sigilo judicial, as investigações em andamento tratam da compra de votos com o dinheiro das emendas, do direcionamento de recursos para empresas aliadas, da arrecadação de propinas em obras e do rateio de dinheiro público entre integrantes de organizações criminosas, sejam parlamentares, servidores públicos, lobistas ou empresários.
No Orçamento da União de 2024 foram quase 50 bilhões de reais em emendas. Estudo dos pesquisadores Hélio Tollini, ex-secretário de Orçamento Federal, e Marcos Mendes, doutor em economia e associado do Insper, mostrou que as emendas chegam a 23% das despesas discricionárias no Brasil. Nos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) não passa de 1%. Aqui, o dinheiro é quase sempre usado para recompensar redutos eleitorais e não para ajudar quem mais precisa. Tudo isso geralmente é feito longe da luz solar necessária. Em sua cruzada, Dino quer reverter essa situação, permitir que a sociedade seja fiscalizada e também priorizar a investigação de indícios de corrupção. “Esse orçamento virou caso de polícia em geral. É uma forma de corrupção institucionalizada”, afirma o diretor executivo da Transparência Internacional no Brasil, Bruno Brandão. “Houve o surgimento de braços executivos do orçamento secreto, como a Codevasf. É uma bomba atômica de desgoverno”, acrescenta, referindo-se à estatal que, responsável pela redução das desigualdades regionais, é responsável por uma série de denúncias de desvio de recursos indicadas por parlamentares.
Ao resistirem em aderir às regras de controle necessárias, deputados e senadores correm o risco de cair em investigações da PF, o que já aconteceu. Há poucos dias, o STF recebeu mais uma denúncia-crime com alterações. Em depoimento ao Ministério Público, o prefeito de Canindé, município do sertão cearense, acusou o deputado federal Júnior Mano, que trocou o PL pelo PSB, de fazer parte de um esquema de corrupção e lavagem de dinheiro que abrangeria quase 30 % das cidades do Ceará. . Segundo a denúncia do prefeito, Mano destinaria emendas a aliados em localidades específicas, que então acionariam uma operadora previamente acordada, que seria responsável por aquecer o dinheiro e devolver parte ao parlamentar. Apesar de desconhecido do grande público, Mano apresenta resultados significativos na área orçamentária. Com pouco mais de 30 mil habitantes, o município cearense de Nova Russas, cuja prefeita é a esposa do deputado, recebeu 80 milhões de reais em emendas ao orçamento secreto. Procurado por VEJA, Mano não quis comentar o caso, alegando estar sob sigilo judicial.
Parcelas deste tipo são frequentes. No final do ano passado, a Polícia Federal prendeu um empresário suspeito de integrar uma organização criminosa que gerou quase 200 milhões de reais por meio de desvios de recursos e empreitadas de obras públicas contra a seca. José Marcos de Moura, o alvo, conhecido como “o rei do lixo”, tem amplas relações com o mundo político, e a mera especulação de que poderia fazer uma delação premiada deixou os parlamentares preocupados. Em outra etapa da mesma operação, um primo do deputado Elmar Nascimento (BA), líder do União Brasil, foi flagrado pela polícia jogando pela janela 220 mil reais em dinheiro. O episódio foi citado em uma das decisões de Dino, que se tornou alvo preferido de críticas do baixo clero e de lideranças do Congresso, que o acusam de criminalizar a política e ajudar Lula a travar as emendas. A indignação contra o ministro ocorre desde que ele chefiava a Secretaria de Justiça e tinha a Polícia Federal sob seu guarda-chuva. Nessa função, ele quase implodiu a relação do governo com a Câmara, segundo análise de auxiliares de Lula.
Em 2022, a PF iniciou uma investigação que apontou indícios de superfaturamento e lavagem de dinheiro em uma compra milionária de kits para aulas de robótica em escolas públicas de Alagoas. Em 2023, já no atual governo, um assessor do atual presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), foi preso neste caso. Em reação, os aliados do deputado acusaram Dino de estar por trás da ofensiva, com o objetivo de enfraquecê-lo. A situação só não piorou porque o inquérito contra o assessor de Lira acabou anulado pelo ministro do STF Gilmar Mendes, com base em supostas irregularidades processuais. “As emendas vêm de dinheiro público, que deve ser empenhado garantindo critérios de transparência, para que a sociedade saiba como está sendo investido, evitando assim desvios e corrupção”, diz a deputada Erika Hilton (SP), do PSOL, partido que apelou ao STF suspende pagamentos. “As determinações do ministro Dino são exatamente o que precisamos. Transparência absoluta, de ponta a ponta, de quem indicou a alteração com qual projeto está comprometido.”
Assim como o grupo psolista, os elogios a Dino no Congresso são minoritários. “A decisão do Supremo sobre as emendas parlamentares causou muito constrangimento, porque atinge prefeituras que dependem desses recursos. Isso criminaliza a política”, afirma o líder do PL na Câmara, Altineu Côrtes. “Se há problemas específicos nas emendas, quem causa esses problemas deve pagar com o máximo de severidade, mas acredito que em 99% das emendas isso não existe.” As investigações da PF vão finalmente separar o joio do trigo. É um bom caminho.
Hugo Marques e Ricardo Chapola colaboraram
Publicado em VEJA em 10 de janeiro de 2025, edição nº. 2926
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