Seguindo a máxima dos imperadores romanos e franceses de “dividir para conquistar”, a estratégia do governo para publicar um pacote de controle de gastos públicos procurou desviar o foco de medidas impopulares, chamando a atenção para gentilezas fiscais e colocando na mesa temas que tendem a gerar entusiasmo entre os eleitores, especialmente os da classe média.
Como resultado, tanto a confusão na comunicação como a combinação de medidas de redução de custos com isenções fiscais e tributação dos mais ricos foram úteis. O objetivo: colocar algumas cabras na sala para que as medidas necessárias sejam aprovadas no Congresso Nacional.
Depois da tensão que o debate sobre a necessidade de corte de despesas (incluindo programas sociais) gerou entre as alas política e econômica e, especialmente, dentro do PT, partido do presidente Lula, a lógica do marketing eleitoral entrou em campo.
E é difícil acreditar que o ministro Fernando Haddad (Finanças) tenha sido vítima nesse processo. O mais político de todos os ministros da Fazenda dos últimos 30 anos, desde que Ciro Gomes e Fernando Henrique Cardoso ocuparam o cargo, Haddad sabe muito bem que em questões complexas como o ajuste fiscal é preciso entregar algo que gere debate e crie uma narrativa em paralelo para conseguir o que deseja.
Praticamente todas as grandes reformas bem sucedidas na história económica recente seguiram esta receita. Some-se a isso o apoio de um marqueteiro que presta consultoria no Palácio do Planalto para aperfeiçoar o discurso com ênfase em indicadores econômicos e sociais, imagens inspiradoras e músicas cativantes e está pronto um pacote fiscal mesclado com propostas de reforma de renda.
Haddad gravou na noite desta terça-feira, 26, em uma sala do sexto andar da sede do Ministério da Fazenda, o discurso de sete minutos em que anunciou as medidas sem detalhar nada. Na véspera, ele havia passado quase quatro horas em reuniões no Planalto.
“Foi um pedido dele (presidente Lula) pela complexidade dos temas que estão sendo abordados (no pacote de medidas)”, disse o ministro para explicar por que o anúncio foi feito em discurso e, só no dia seguinte, ele e outros Quatro colegas do ministério deram entrevista à imprensa sobre o pacote fiscal.
Entre as medidas incluídas na lista do governo, pelo menos uma delas pode servir bem ao papel do bode da sala —algo que chama a atenção, causa desconforto e que, no fundo, a pessoa está até disposta a abrir mão para alcançar o almejado objetivo. Este é o caso isenção do pagamento de IR (Imposto de Renda) para quem ganha até R$ 5 milque será financiado pela tributação dos mais ricos (renda superior a R$ 50 mil por mês) e pelo fim da isenção de IR para pessoas com doenças graves, como câncer e AIDS, para quem tem renda acima de R$ 20 mil.
Promessa de campanha do presidente Lula, a isenção do IR é algo que, politicamente, é difícil de ser contestado. No entanto, está ligado a outro que a própria equipa económica já tentou fazer sem sucesso: tributar os super-ricos. O combo precisa de aprovação do Congresso Nacional, onde deputados e senadores são duramente atingidos. O governo está confiante de que este tema será discutido sem pressa em 2025 e, quem sabe, implementado a partir de 2026. Se até lá não der certo, não será culpa do governo e, também, não haverá prejuízo nas contas públicas.
Dólar, taxa de câmbio e mercado de ações
Porém, o anúncio da mudança no IR causou tensão nos mercados financeirosfez investidores e analistas torcerem o nariz, o dólar disparou para a máxima histórica (R$ 6), o índice da bolsa despencou e todo mundo falou sobre isso. Para a população, permanece o que interessa ao governo: as gentilezas, inclusive a intenção do governo de isentar do Imposto de Renda quem ganha até R$ 5 mil.
A volatilidade financeira foi o preço pago, mas acredita-se que ocorreria da mesma forma se o pacote incluísse apenas medidas fiscais. Acredita-se que, nos próximos dias, os sentimentos se acalmarão e os analistas apostarão no fortalecimento das regras do quadro fiscal.
A reação inicial do mercado financeiro, que, no início da semana, refletia a preocupação com aumento de despesas com a medida do IR, focou nesta quinta-feira em medidas fiscais, consideradas tímidas para frear a trajetória ascendente da dívida pública e equilibrar os gastos . .
Por outro lado, entretanto, enquanto a atenção se volta para as medidas de reforma de rendimentos, o governo explica em profundidade as iniciativas que, de facto, interessam à equipa económica, mas como não são populares, menos detalhadas são , melhor. O material distribuído à imprensa foi superficial, limitando-se a tratar mais do conceito do que das medidas em si. A conferência de imprensa com técnicos de Finanças e Planeamento para explicações adicionais foi interrompida antes de tudo ser esclarecido.
Mas a equipa económica tem pressa em votar esta parte do pacote. A PEC (proposta de emenda constitucional), o PLC (projeto de lei complementar) e o PL (projeto de lei) com as alterações serão enviados ao Congresso esta semana, segundo Haddad, e acredita-se que poderão ser aprovados em 2024.
Esse bolo inclui propostas impopulares, mas com impacto nas contas públicas, como a redução dos critérios de acesso ao abono salarial (a renda máxima será reduzida do equivalente a dois salários mínimos, para o valor nominal de R$ 2.640 corrigido pela inflação) , a criação de um teto de 2,5% para o reajuste real do salário mínimo, cortes de subvenções e subsídios, maior controle sobre concursos públicos e a limitação do aumento dos repasses feitos ao governo do Distrito Federal por meio do Fundo Constitucional do Distrito Federal .
O dinheiro do fundo DF é uma espécie de aluguel que a União paga para sediar os três poderes em Brasília. Pela norma, o valor é um percentual da receita da União, que vem crescendo com a arrecadação recorde. Agora, a correção ficará limitada à variação do IPCA, como já acontece com outros fundos de desenvolvimento regional. A medida isola a bancada do DF no Congresso, por ser a única que teria interesse em lutar para reverter a mudança.
G20 e supersalários
A construção da narrativa para a divulgação do pacote também se beneficiou de agendas governamentais como o debate sobre a tributação dos super-ricos no G20, a inclusão de questões sociais na reunião dos líderes das maiores economias do mundo no Rio, a discurso dos ministérios de contribuição de todos para o ajuste (que inclui os militares no centro do debate) e até vazamento estratégico de informações.
Minutos antes da declaração oficial de Haddad, o ministro Luiz Marinho (Trabalho) disse que o governo atacaria os supersalários, em referência aos servidores públicos que ganham mais que o teto constitucional (R$ 44 mil).
Fazer do ministro da Fazenda um fantoche do presidente e o marketing político o protege, pois o mercado continua ancorando expectativas nele, assim como no novo presidente do Banco Central, Gabriel Galípolo, que também participou da reunião com Lula para avaliar as medidas.
“O presidente queria ouvir todo mundo”, disse Haddad. “O presidente dialoga com o país inteiro, com as expectativas das pessoas em relação à justiça social, com uma série de desejos reprimidos, o que é típico de uma liderança da sua estatura”, argumentou o ministro. “Ele ouviu e tomou a decisão”, acrescentou.
Ao longo da explicação das medidas, o ministro pareceu bastante confortável e tranquilo, mesmo quando questionado sobre a volatilidade financeira e sinalizou que a estratégia política norteou as medidas adotadas.
“Às vezes, colocar o Ovo de Ninho (programa de auxílio a jovens estudantes) dentro do orçamento da secretaria de educação tem um impacto maior do que mudar a regra de vinculação até 2028/2029 (do crescimento dos gastos na área para o aumento da receita federal)”, argumentou Haddad. “Às vezes, dado o valor já investido na Saúde muito acima do atual mínimo constitucional, vale mais a pena arrecadar mais receitas com emendas parlamentares”, continuou como exemplo.
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Segundo o ministro, “todas estas considerações foram feitas em cada ponto” do pacote. “Quando alguém apresentou a ideia de que a medida causaria ruído, poderia prejudicar a aprovação e não teria impacto, ninguém é teimoso a ponto de se recusar a ver os dados”. Não por acaso, a ministra Simone Tebet considerou que o pacote “o ajuste fiscal foi possível tanto no aspecto técnico quanto no político”.
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