Quando Gabriel García Márquez (1927-2014) lançou Cem Anos de Solidãoem 1967, um dos seus objetivos confessados era que a história fosse tão monumental e vertiginosa que desencorajasse qualquer tentativa de adaptação audiovisual. “Quero que a comunicação com meus leitores seja direta, por meio de palavras, para que eles possam imaginar os personagens como quiserem — e não com o rosto emprestado de um ator na tela”, disse. Em sua obra-prima, o futuro ganhador do Prêmio Nobel de Literatura narra uma trama que atravessa sete gerações e tem como pano de fundo o idílico Macondo. Neste lugar do Caribe colombiano, situações inusitadas, como a chuva que cai sem parar durante quatro anos, onze meses e dois dias, e fantasmas que retornam do Além porque não há nada para fazer ali, dividem espaço com ações muito humanas, como como a exploração de trabalhadores para a indústria bananeira ou uma guerra civil que devastou o país.
Como um todo, finalmente, o romance parece desafiar qualquer tentativa de síntese ou tradução visual – e o próprio Gabo recusou propostas polpudas para transformá-lo em filme. Transformar a ficção do autor em imagens não se revelou uma boa ideia. Amor em tempos de cólerao primeiro grande filme de 2007, foi um fracasso de público e crítica, mesmo com elenco estrelado por Javier Bardem e a brasileira Fernanda Montenegro. Porque agora o poder de sedução (e o dinheiro) do streaming está prestes a derrubar esse tabu literário. Dez anos após a morte do autor, a Netflix abraçou a audaciosa tarefa e, com o consentimento dos herdeiros, lançou no dia 11 de dezembro uma suntuosa adaptação de Cem Anos de Solidãona forma de uma minissérie de dezesseis episódios.
Totalmente falada em espanhol, filmada na Colômbia e com a maior parte dos atores e equipe nascidos no país — demandas dos filhos de Gabo —, a produção é o passo mais ambicioso de um movimento de resgate das principais obras do realismo mágico, o consagrado estilo de o escritor — não apenas na Colômbia, mas em toda a América Latina. A Netflix também acaba de lançar o filme Pedro Páramoadaptação do clássico do mexicano Juan Rulfo. Obras que se inspiram na tendência com apelo pop também pedem passagem. No Max, a série estreou recentemente Como água para chocolateprodução executiva de Salma Hayek, com enredo que combina a revolução mexicana com erotismo e gastronomia. Finalmente, a série A Casa dos Espíritosque traz para a TV o best-seller da chilena Isabel Allende, estreia no ano que vem no Prime Video.
A obra de Gabo acompanha a saga dos primos José Arcadio Buendía e Úrsula Iguarán, que se casam e deixam sua cidade natal para fundar Macondo, “um vilarejo de vinte casas de barro e bambu, construídas às margens de um rio de águas límpidas”, como o autor descreve. Com o passar dos anos, a família cresce, assim como a casa onde moram e a cidade. Portanto, os desafios na adaptação do livro foram além dos personagens, pois os cenários também são parte intrínseca da história. “Nosso maior medo era que a adaptação de um livro considerado intocável destruísse a imagem de Macondo que os leitores criaram em suas cabeças”, disse a roteirista Natalia Santa a VEJA. A estratégia, segundo ela, foi investir na pesquisa histórica e na construção de uma cidade cênica em tamanho real, em Alvarado, no departamento de Tolima, a cerca de 200 quilômetros de Bogotá. O local, longe de Aracataca, cidade natal de Gabo e inspiração para Macondo, foi escolhido, segundo a designer de produção Bárbara Enríquez, porque reunia todas as características de vegetação e clima e tinha infraestrutura para registrar.
As cores daquela Colômbia mágica descrita por Gabo não são garantidas apenas pela decisão de filmar no país: a troca de efeitos visuais computacionais por dispositivos artesanais confere à série um charme peculiar. No total, mais de 1.000 pessoas trabalharam na construção da cidade cênica e cerca de 80% dos objetos utilizados na casa Buendía vieram de antiquários colombianos. Também foram confeccionadas cerca de 20 mil peças de fantasias, entre roupas, sapatos e chapéus. Até as plantas mereceram atenção especial, como o corredor de begônias, bem como o castanheiro do pátio, substituído nos biombos pelo camajón, típico da região.
A aposta da Netflix em Cem Anos de Solidão ilumina outro fenômeno notável: nos últimos anos, a produção audiovisual colombiana deu um tremendo salto de qualidade. O país se tornou um forte polo de produções para streaming, como o filme Pimpinero: Sangue e Gasolinado Prime Video, e séries da própria Netflix, como Bolívarsobre o herói nacional que liderou os movimentos de independência na região e o adolescente Sempre Bruxaambientado em Cartagena das Índias. Aparentemente, a viagem mágica pela América Latina está apenas começando.
Publicado em VEJA em 22 de novembro de 2024, edição nº. 2920
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