Ivo Herzog sobre ‘Ainda Estou Aqui’: ‘Homenagem às…

Ivo Herzog sobre ‘Ainda Estou Aqui’: ‘Homenagem às…


Filme de Walter Salles, Eu ainda estou aqui chegou aos cinemas nesta quinta-feira, 7, trazendo para as telas a história da família Paiva, cuja vida foi marcada pelo assassinato do patriarca e ex-deputado Rubens Paiva (1929–1971) pela ditadura militar. Baseado no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, único homem dos cinco filhos de Rubens e Eunice, o filme ilumina a dor de diversas famílias cuja rotina foi drasticamente alterada pela violência do período, que contabiliza oficialmente 434 mortes.

Filho de jornalista Wladimir Herzog (1937-1975), falecido em 1975, Ivo, hoje com 58 anos, tinha apenas 9 anos quando seu pai foi torturado e morto nas dependências do DOI-Codi, em São Paulo. Em entrevista a VEJA, ele fala sobre a importância do filme para dar visibilidade à história das famílias vítimas da ditadura e analisa a condução do governo brasileiro nas investigações e na memória das vítimas. Confira:

Eu ainda estou aqui acompanha a família de Rubens Paiva após ele ser assassinado pela ditadura. Seu pai também foi morto pelo regime. Como você analisa o papel deste filme para os familiares sobreviventes? Ele é super importante. É uma grande homenagem às heroínas da ditadura, como Eunice, e também a toda a família Paiva. Ao mesmo tempo, é mais um tapa na cara de mais um governo que não se importa com a dor destas famílias. É quase um processo de tortura infinita e prolongada. Estamos no terceiro mandato de Lula e o governo proibiu o Estado de lembrar os 60 anos do golpe de 64, e ainda há muita história que precisa ser contada e muita justiça que precisa ser feita.

Você acha que o cinema preenche essa lacuna? A arte ajuda a dar visibilidade a temas inerentes à sociedade, mas não tem essa obrigação. A beleza da arte denuncia os horrores que a humanidade comete, mas a responsabilidade por esses horrores, em última análise, cabe ao Estado, e temos que responsabilizar o Estado por esta responsabilidade.

Como o senhor analisa a forma como o governo Lula está lidando com o tema? A Comissão de Mortos e Desaparecidos, promessa de campanha de Lula, demorou mais de um ano para ser restabelecida. Mas ficou só no papel, porque não há financiamento. O Comité da Amnistia não pode realizar uma reunião porque não tem fundos para pagar as passagens aéreas dos conselheiros. Lula até recriou os órgãos de reparação, mas apenas burocraticamente. Na prática, estes órgãos não conseguem funcionar porque não existem condições de trabalho. Depois precisamos de pessoas como a família Paiva e cineastas para ajudar a contar a nossa história, porque o Estado brasileiro continua falhando.

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Ivo Herzog, filho do jornalista Vladimir Herzog: “Ainda há muita história que precisa ser contada” (Zé Carlos Barretta/Mônica Bergamo/Folhapress/VEJA)

Como está o caso do seu pai? A primeira sentença, em 1978, do juiz Márcio Moraes, determinou que o Estado investigasse as circunstâncias de sua morte, mas isso nunca foi feito. Nem foi contestado, apenas se tornou definitivo. É uma ordem judicial que não foi cumprida até hoje. A sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos, há três ou quatro anos, foi a mesma coisa, até agora não foi cumprida.

O filme mostra que a dinâmica da família Paiva mudou muito após o assassinato de Rubens. Como foi esse processo na sua casa? Mudou muito também. Minha mãe, além de buscar a justiça e a verdade, meteu na cabeça que nem meu irmão nem eu teríamos nosso desenvolvimento prejudicado pela tragédia. Ela se tornou uma viciado em trabalhofuncionou de uma forma louca, e isso teve impacto na dinâmica familiar. Te também o legado que carregamos. Não é agradável falar da morte do meu pai, mas falamos disso porque é importante. Se o Estado brasileiro não falar, e a família também não falar, então eles vão esquecer mesmo.

Herzog
Vladimir Herzog, jornalista da TV Cultura, morto nos porões do DOI-CODI durante a ditadura (Wilson Ribeiro/Cláudia/Dedoc)

Sua mãe, Clarice Herzog, assim como Eunice Paiva, tornaram-se essenciais na busca pela Justiça. Como você vê o papel dessas mulheres? Tenho uma história interessante sobre isso com Marcelo Rubens Paiva. Há alguns anos, durante uma Flip, ele disse uma coisa que eu nunca tinha parado para pensar, que meu pai e o pai dele não eram heróis. Os verdadeiros heróis, ou melhor, as heroínas, foram suas esposas, companheiras que lutaram a vida inteira em busca da justiça e da verdade. Nossos pais foram vítimas dessa máquina terrorista que existiu durante a ditadura. É claro que as vítimas são muito importantes na história, mas normalmente há também um companheiro, uma esposa, uma mãe ou algum outro membro da família cuja vida foi completamente alterada pela tragédia e por uma luta que continua até hoje.

E qual a importância de continuar investigando a violência da ditadura? A partir do momento em que o Estado brasileiro investiga e conta essa história — e eventualmente pede perdão e reconhece que foi um erro —, cria-se o caminho para que essas atrocidades não voltem a acontecer. Ainda somos uma democracia muito frágil e uma das razões para isso é que não investigamos nem fazemos justiça. Fazer justiça não é pegar ex-militares que hoje têm 80, 90 anos e colocá-los na cadeia. O mais importante é que estes militares agiram sob as ordens de um Estado que deve ser julgado. É necessário identificar e registrar as pessoas que participaram disso para que isso não aconteça novamente.

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