Se houvesse uma trilha sonora para o sonho americano – e existe – ela teria os dedos de um trompetista, pianista e arranjador. Quincy Jones. Onde quer que ele colocasse a mão, ao construir partituras com um toque jazzístico permanente, ele fazia ouro. A lista de músicos com quem trabalhou (e reinventou) é infinita e começa com nomes como Ray Charles, Count Basie, Frank Sinatra, Aretha Franklin – e, claro, Michael Jackson. Jones produziu meticulosamente o álbum Filme de açãodo rei do pop, em 1982. A dupla tinha uma ambição, fazer o “maior álbum da história”. O resultado: a construção de um totem inigualável, que vendeu cerca de 120 milhões de exemplares. Na hora de montar a lista de músicas, com clássicos como cai fora e Billie JeanJones resumiu a fórmula: “Você tem que ir direto à garganta em quatro, cinco, seis áreas diferentes: rock, adulto contemporâneo, R&B e soul”, disse ele.
Ele poderia muito bem ter se lembrado também de outra escola que sempre admirou, matriculada em Big Band Bossa Novade 1962, inspirado na revolução de João Gilberto, Tom e Vinicius nascidos em Ipanema. É impossível não ficar entusiasmado com a versão americana do Chega de saudade e Samba de uma nota. Entre os brasileiros, trabalharia também com Milton Nascimento, Ivan Lins e Simone, que classificou entre os maiores do mundo. “As melodias são reis, nunca se esqueça disso”, costumava dizer. “As letras parecem vir da frente, mas não vêm.” Mesmo com um intérprete brilhante como Sinatra, de dicção e afinação perfeitas, com quem trabalhou no início da década de 1950, os instrumentos prevaleceram sobre as palavras — Voe-me para a luasua obra-prima, de 1954, leva qualquer ser humano à Lua. Quincy Jones morreu em 3 de novembro, aos 91 anos, em Los Angeles.
O romantismo do Rei da Voz
A voz alta de Agnaldo Rayol é uma joia de canção romântica ouvida por gerações de brasileiros. Começou a fazer sucesso de mãos dadas com a Jovem Guarda de Roberto Carlos, mas logo voltou ao que fazia com maestria: o cancioneiro romântico, principalmente standards italianos e americanos. Na década de 1990, ele fez sucesso com Mia Giocondaque virou tema da novela O rei do gadoe Tormento de Amorabertura de Terra Nostraambos da Globo. Com cara de galã, o Rei da Voz, como era apelidado, também foi estrela da televisão em seriados na década de 1970, como Os Alunos do Senhor Reitor e Os deuses estão mortosda Record. Rayol morreu no dia 4 de novembro, aos 86 anos, após uma queda em sua casa, em São Paulo.
A lente mágica e humana
Como “o jornalismo é um rascunho da história”, na definição de um ex-presidente do O Washington Posto fotógrafo Evandro Teixeira Ele deveria ser celebrado como um de seus repórteres mais astutos. As imagens do baiano filho de um agricultor e de uma dona de casa de Irajuba, a 300 quilômetros de Salvador, nascido no dia de Natal, ajudam a contar — principalmente em preto e branco — a história do Brasil a partir da segunda metade do século XX, especialmente a terrível período da ditadura militar.
Contratado por Jornal brasileiro em meados da década de 1960, após fazer um curso por correspondência oferecido pela revista O CruzeiroEvandro começou a se destacar registrando a violência do boné como ninguém havia feito antes. Na madrugada do dia 1º de abril de 1964, ele flagrou a movimentação de soldados no Forte de Copacabana, debaixo de chuva, na contraluz, que apareceria na capa do JB – e que logo se tornaria um símbolo dos horrores que nasceram. Em junho de 1968, meses antes da decretação do AI-5, fez outro clique memorável durante uma manifestação contra o governo —o do estudante cercado por dois policiais com fitas cassetes na mão, caindo no asfalto, no entorno do Theatro Municipal do Rio . “Na foto, os três estão no ar e os óculos do aluno estão voando. Ele deu um gemido tremendo e ficou ali esticado. Os soldados tentaram levantar o menino, tirei outra foto e fui embora, porque eles estavam correndo atrás de mim”, disse, no seu estilo, simples e direto.
De raciocínio rápido, quase sempre no lugar certo, em cantos afastados dos colegas, via o que ninguém via e fazia das suas lentes um instrumento de manifesto quotidiano. Como o Brasil talvez fosse pequeno demais para ele, ele também se concentrou na ditadura militar do Chile de Pinochet, em 1973, completada com um furo internacional – as cenas do poeta morto Pablo Neruda. “Ele tem uma fotografia de resistência, humanística, na linha de frente”, disse a VEJA Sergio Burgi, curador de uma exposição dedicada ao seu trabalho que, no ano passado, ocupou as salas do Instituto Moreira Salles, no Rio e em São Paulo.
Acostumado com câmeras sempre pequenas, como a Leica — analógica e só recentemente digital —, Evandro raramente usava lentes telefoto, o que o afastaria muito das cenas, como ensinou o francês Robert Capa: “Se suas fotos não são boas o suficiente, então você não é bom o suficiente. perto o suficiente.” Faleceu no dia 4 de novembro, no Rio de Janeiro, aos 88 anos, de falência múltipla de órgãos, após pneumonia. O que resta dele é a memória anotada por Carlos Drummond de Andrade em poema inspirado no arsenal de Evandro no calor dos acontecimentos de 1985: “É preciso que a lente mágica enriqueça a visão humana”.
Publicado em VEJA em 8 de novembro de 2024, edição nº. 2918
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