Lendo as palavras poderosas de Vincent van Gogh sobre seu ofício, fica claro que aqui estava um homem visceralmente comovido pelo que fazia – arte. “O pincel cabe entre os meus dedos como se fosse um arco de violino, para meu absoluto prazer”, escreveu, em setembro de 1889, entre centenas de cartas endereçadas ao seu irmão e melhor amigo, Theo. Pintar o que viu, e sobretudo o que sentiu, foi a alavanca mais poderosa numa existência conturbada, em que lutou contra o alcoolismo e, segundo o conhecimento moderno acumulado sobre a mente, também contra prováveis depressões e outros distúrbios. Em julho de 1890, pouco depois de revelar toda a sua paixão pelas pinturas que produzia uma após a outra, deu um tiro no peito com uma arma de fogo, e acabou morrendo pelo ferimento dias depois, na vila francesa de Auvers-sur-Oise. , 37 anos.
Uma exposição recentemente inaugurada na National Gallery de Londres, que fica até 19 de janeiro de 2025, abraçou o desafio de reunir cinquenta das melhores obras do holandês que surpreendeu o francês Paul Gauguin (1848-1903), de quem nutriu talvez a relação mais neurótica e apaixonada entre artistas, pela sua capacidade produtiva — rápida e brilhante. O resultado é Poetas e Amantesque retrata a visão de Van Gogh sobre a poesia, o amor e as transformações pelas quais passou seu cérebro em permanente ebulição. A exposição, que abrange as expressões mais valiosas do pintor conhecido tanto pelo mergulho nas cenas rurais, que tão astutamente investigou, como pela rebeldia dos seus girassóis, é o resultado de uma colaboração com alguns dos mais prestigiados museus, quarenta instituições como o MoMa, em Nova York, e o Orsay, em Paris. “Van Gogh procurou transformar modelos e paisagens em ideais e mitos. Ele é um observador que transfigura o que vê a partir de muito sentimento”, definiu VEJA Cornelia Homburg, uma das curadoras da Galeria Nacional.
O passeio pela imaginação de Van Gogh começa com uma pintura do oficial do Exército Paul-Eugène Milliet, um homem de olhar sonhador que contrasta com um céu esmeralda, adornado por uma lua dourada e uma estrela sem compromisso com suas reais dimensões. “Ele tem todas as mulheres que quiser”, registrou o artista, com um pouco de inveja do policial, eternizado na obra chamada O amante. Já O Poetauma pintura que combina com a outra, apresenta um sujeito ansioso e magro sob um céu estrelado, como o holandês tanto gostava. Nesses dois tipos comuns, segundo especialistas, o mestre das escovas nervosas conseguiu ver romances e sonetos, construindo um mundo próprio, que ajuda a mergulhar na riqueza de sua alma. “Ele queria ser um amante, mas se via mais como um poeta”, diz Felipe Martinez, doutor em história da arte pela Universidade de Amsterdã.
O período que passou na Provença, no sul da França, foi um turbulento divisor de águas. Os primeiros meses foram repletos de intensa alegria com todo aquele colorido provençal, mas a estadia terminou tragicamente com a automutilação —infeliz e inseguro, o artista decidiu cortar a orelha esquerda e foi parar num instituto psiquiátrico. É interessante notar que as pinturas da época, algumas expostas nas paredes do museu londrino, não apresentam tom de tragédia ou amargura. Foi nesse ambiente francês mais informal que o seu estilo se separou decisivamente das linhas, algo que se verifica em paisagens que beiram a abstração total. Em O jardim do asilo em Saint-Rémy (1889), a grama irrompe do chão como ondas, as árvores dançam e os borrões tornam-se mais pronunciados. É uma ruptura com o início, quando Van Gogh olhou para o duro cotidiano dos trabalhadores rurais, depois de trocar a vida de pregador evangélico — que seu pai, pastor com quem teve uma relação difícil, sonhava — por aquela de um pintor. . Com tons terrosos, seu trabalho mais emblemático desses primórdios é Os comedores de batata (1885), em que, com exceção da luz de uma lâmpada, predomina o pitch. O próprio autor acreditou então que estava diante de sua melhor obra — até ser seduzido pelos impressionistas da cena parisiense.
Foi mais tarde, em Arles, que ele, um idealista, começou a sonhar com um Estúdio do Sul – uma comunidade de artistas que partilhasse a criatividade e os custos envolvidos na produção do que há de mais vanguardista no mundo das artes. Naquele 1888, Gauguin foi para lá a pedido de Theo, momento em que a série Girassóis veio ao mundo – pela primeira vez exposto como um todo na Galeria Nacional. As violentas divergências entre os dois pintores (um grupo de especialistas acredita que a deterioração mental do holandês teve muito a ver com a constante queda de braço com Gauguin) acabaram por transformar a forma de pensar a arte de Van Gogh. “Ao lado de Gauguin, que trabalhava com a imaginação, passou a distorcer imagens intencionalmente para demonstrar o que sentia, marco fundamental para a pintura moderna”, explica Felipe Martinez.
Numa carta a Theo, Vincent (pois preferia assinar os seus quadros) afirmava: “Agora vou ser um colorista arbitrário. Eu pinto o infinito.” Um dos destaques da exposição, Noite estrelada sobre o Ródanoé um exemplo desta escola, inteiramente feita de pinceladas largas e expressivas para transmitir a emoção e o brilho absoluto das estrelas, que, estando tão próximas, parecem transformar a Terra num outro planeta. Esta já não é uma pintura de luz, como faziam os impressionistas, ou da realidade circundante, mas um retrato da mais pura emoção.
Quando Van Gogh, o primeiro modernista a romper completamente com as regras do jogo, tornou-se mais radical no final da vida, muitos atribuíram a mudança ao seu estado mental. É verdade que os seus contornos tornam-se cada vez mais sinuosos e a paleta de cores quase alucinante. Tudo agora vem embalado com um tom mais pessoal, que engloba sofrimento e tristeza profunda. “Seu desenvolvimento estilístico, porém, não foi prejudicado. Ele era um artista metódico, fazia escolhas composicionais deliberadas e até planejava pintar entre as crises mais graves”, disse a VEJA Teio Meedendorp, chefe de pesquisa do Museu Van Gogh de Amsterdã. Suas noites estreladas eram sonhos que ele tinha, não uma forma de ver o mundo. Os autorretratos, por outro lado, contêm algo que soa como uma desconcertante lucidez pela própria falta dela. Como Van Gogh escreveu ao seu irmão: “Esteja ciente das estrelas e do infinito acima. Afinal, a vida parece quase encantada.” Assim foi o poeta, o amante da vida que se desenvolvia ao seu redor e um dos grandes gênios do que se consolidou como pintura moderna.
Publicado em VEJA em 1º de novembro de 2024, edição nº 2.917
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