As tradicionais medidas arrecadatórias de fim de ano

As tradicionais medidas arrecadatórias de fim de ano


A prática recorrente do governo brasileiro de concentrar a publicação das medidas de arrecadação no final do ano parece ter se tornado uma espécie de tradição. O problema é que esta estratégia de última hora cria um ambiente de enorme incerteza fiscal, dificultando o planeamento financeiro das empresas. Em 2023, por exemplo, foi anunciado no último trimestre o aumento de impostos, o que limitou o tempo para as empresas ajustarem suas finanças e absorverem os impactos tributários de forma eficiente.

A aprovação da Lei 14.789/2023, originalmente apresentada como a famigerada Medida Provisória 1.185/2023, trouxe mudanças substanciais no tratamento tributário dos subsídios estaduais de ICMS, gerando diversas críticas devido ao processo acelerado e à falta de debate público. Proposta inicialmente como solução para regular a utilização de benefícios fiscais, a medida foi aprovada com condições para a liberação de emendas e posicionamentos parlamentares, o que levanta preocupações sobre a troca de apoios políticos por vantagens financeiras de curto prazo. A verdadeira “corrida contra o tempo” para fechar as contas do país acabou gerando insegurança jurídica para empresas e investidores, além de prejudicar um debate mais amplo sobre os impactos econômicos da medida.?

Além disso, a mesma lei também trouxe alterações relevantes no cálculo dos Juros sobre Capital Próprio (JCP), especialmente ao restringir as contas patrimoniais que podem servir de base para esse cálculo. Antes da lei, as empresas tinham mais flexibilidade na inclusão de reservas de capital e de lucros, bem como de ações em tesouraria e outros componentes do patrimônio líquido. Com as novas diretrizes, a base foi reduzida, passando a incluir apenas o capital social integralizado, determinadas reservas de capital e reservas de lucros, mas excluindo as reservas associadas a incentivos fiscais e aumentos patrimoniais resultantes de transações entre dependentes, que não envolvem entrada efetiva de ativos. Essas mudanças impactaram diretamente no valor dos JCP que pode ser deduzido do IRPJ, reduzindo a economia tributária que as empresas obtinham ao distribuí-los.

O que acontece é que a redução das vantagens fiscais – por si só – não pode ser considerada um problema. Na verdade, o governo precisa mesmo rever toda uma geração de benefícios que foram concedidos sem critério e, principalmente, sem remuneração. O problema é implementar tais alterações fiscais sem prever os impactos estruturais. O exemplo do caso JCP é clássico: mantendo uma das mais altas alíquotas nominais de imposto de renda corporativo (34%) do mundo, o Brasil sofre por não conseguir traduzir isso em uma forma progressiva e justa de cobrar impostos sobre os lucros corporativos. . É um eterno jogo de perder ou perder.

Acelerando o ritmo até 2024, não surpreendeu absolutamente ninguém que o governo insistisse mais uma vez em medidas fiscais de final de ano. O mais discutido deles, a implementação da tributação mínima global no Brasil, tem gerado críticas, especialmente em relação ao seu suposto caráter neutro. A MP 1.262/2024, que institui o Adicional da CSLL, é justificada como uma resposta defensiva à tributação internacional, mas esta afirmação não é sustentável. Com a nova medida, as multinacionais brasileiras enfrentarão uma carga tributária maior, que será aplicada antes mesmo da entrada em vigor da regra do Pilar 2 da OCDE, prevista para atingir essas empresas no Brasil apenas em 2027. Assim, o Brasil estaria impondo um novo imposto sem que uma cobrança semelhante ocorra em outros países.

Além disso, as multinacionais americanas e de outros países que investem no Brasil também sentirão os efeitos desse aumento da carga tributária, uma vez que os Estados Unidos, principal investidor estrangeiro, adotam regras tributárias próprias que não estão necessariamente alinhadas ao Pilar 2. Com esta abordagem, o Brasil parece querer aplicar seletivamente partes da proposta da OCDE, resultando em impostos adicionais sobre lucros locais e remessas de multinacionais. E ainda nem chegámos ao ponto que talvez seja o mais polémico de toda esta situação: a análise de como serão (de novo!) os incentivos fiscais e o seu impacto total no desenvolvimento económico do país.

O intrincado sistema tributário do Brasil é frequentemente apontado como um dos mais complexos do mundo, resultando em desafios significativos tanto para os contribuintes quanto para a administração tributária. Com uma infinidade de impostos, cada um com suas próprias regras, alíquotas e isenções, empresas e indivíduos enfrentam um labirinto burocrático que torna extremamente complicado o cumprimento das obrigações fiscais. Essa complexidade por si só já seria uma fonte inesgotável de litígios, polêmicas e insegurança jurídica, mas o governo parece entender que é possível piorar o cenário. Ao propor mudanças apenas para fins de captação de recursos, a sensação que temos é que estamos constantemente ampliando o manicômio fiscal brasileiro, com a inauguração anual de alas que não prevíamos há apenas 12 meses. Num cenário em que a eficiência fiscal é essencial para o desenvolvimento económico, colocar a receita em primeiro lugar pode gerar um problema muito maior do que aquele que se pretendia combater.

Além disso, a insistência em lançar tais medidas em momentos críticos acaba por transmitir ao mercado a imagem de um governo que procura fechar o orçamento anual a qualquer custo, em vez de implementar uma política fiscal estável e transparente. A mensagem final não poderia ser mais desafiadora: a espera constante pela “tradicional surpresa fiscal”, como um presente trazido pelo Papai Noel todos os anos, só compromete ainda mais o ambiente de negócios, já tão fragilizado pela nossa tradicional insegurança jurídica. Já passou da hora de trocarmos certas tradições.

Maria Carolina Gontijo é advogada especializada em Direito Tributário. Consultora, professora, palestrante e administradora do perfil “Duquesa de Tax” nas redes sociais



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