Antes de assumir o Ministério da Defesa, José Múcio foi deputado federal por vinte anos, ministro das Relações Institucionais no segundo mandato de Lula e ministro do Tribunal de Contas da União. Como parlamentar, atuou na arena do regime militar, foi filiado ao PDS, ao PTB, ao PSDB e ao PFL (hoje, União Brasil). É um político experiente, possuidor de algumas virtudes raras, sobretudo o bom humor com que enfrenta os problemas. Ele comparava seu antigo escritório no Palácio do Planalto, por exemplo, a um “bolo de rolo”, iguaria típica de seu estado natal, Pernambuco. Mas fez uma ressalva importante: ali, o que sobrou foi só uma dor de cabeça —rotina que retomou quando decidiu abandonar a aposentadoria e aceitar o convite para voltar ao governo em 2023. E os problemas têm sido tantos que, se dependesse dele apenas de alguns aliados, o ministro não teria sobrevivido à primeira semana de mandato. A sua “renúncia” já foi anunciada diversas vezes – a última, aliás, há duas semanas, depois de ter disparado publicamente uma série de fogos de artifício que ricochetearam em alvos dentro do próprio governo.
Diante de uma plateia de empresários, Múcio afirmou que houve “diferenças ideológicas” nas decisões envolvendo as Forças Armadas, criticou o impedimento da exploração de potássio em terras indígenas e criticou a decisão do governo de suspender licitação para compra de veículos blindados de Israel . Sinceridade é outra de suas qualidades. “Havia agora uma competição, uma licitação, os judeus, o povo de Israel, venceram. Mas (…), por questões ideológicas, não podemos aprovar”, queixou-se. Múcio disse ainda que o Ministério da Defesa ficou “órfão” e que a população deveria creditar aos militares o fato de não ter havido ruptura democrática no dia 8 de janeiro do ano passado. As declarações tiveram um impacto enorme. Políticos da oposição elogiaram-no, enquanto aliados e o PT classificaram as opiniões como ofensivas, especialmente em relação a Celso Amorim, assessor internacional do Presidente da República e promotor do boicote às empresas israelitas. Rolo grande. A “demissão” desta vez parecia iminente.
Entre todos os auxiliares da cúpula do governo, Múcio é um dos poucos que não tem um partido, um grupo político ou uma base social por trás dele — situação que, por si só, já denotaria um alto nível de fragilidade . Nem tudo é o que parece. Após as declarações do ministro, o próprio presidente tentou acalmar a polêmica. Lula disse em entrevista que Múcio o chamou de “apavorado” porque ele havia dito o que não deveria, mas que o assunto estava encerrado e em nada afetou a permanência do “amigo” no governo. Em outras palavras, página virada. Ao contrário do que disse o presidente, porém, o ministro não se assustou nem achou que havia falado demais. “Eu precisava fazer aquele discurso”, comentou a um parlamentar, lembrando que, até por uma questão de estratégia, às vezes é necessário defender bandeiras que podem gerar ruído para garantir boas relações entre militares e governo. “E o PT continua me queimando”, acrescentou, sem demonstrar preocupação.
O ministro, aliás, é um negociador talentoso. Ainda durante a transição de governo e em meio ao clima de tensão e desconfiança que existia entre o quartel e os petistas, foi-lhe dada a missão de começar a acalmar as coisas. Diligentemente, levou o presidente para cerimônias militares, trabalhou para despolitizar os quartéis, impediu manifestações de aliados contra as Forças Armadas e afastou discretamente os oficiais acusados de flertar com o golpe. Antes dos ataques de 8 de janeiro, Múcio disse que o acampamento em frente ao QG do Exército era uma “manifestação democrática” e se opôs à retirada de apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro do local. Ao acenar para os dois lados, o ministro evitou aumentar a tensão, mas, ao fazê-lo, também suscitou antipatias específicas —algumas não recomendadas. No dia do motim, por exemplo, a primeira-dama Janja da Silva criticou o ministro por sugerir ao presidente o decreto da Garantia da Lei e da Ordem (GLO), dispositivo que confere poderes de polícia às Forças Armadas. Seguindo sua estratégia, Múcio disse ainda que não considerava as depredações dos prédios do Planalto, do Supremo Tribunal Federal e do Congresso como uma tentativa de golpe de Estado, ao contrário do que o próprio Lula havia declarado publicamente. Rola e rola mais.
Naquela semana fatídica, Múcio não só foi “demitido”, como também foi informado sobre o nome de seu sucessor, ninguém menos que o vice-presidente Geraldo Alckmin. Para superar a crise, o ministro lembrou ao presidente que sua prioridade não era conquistar o favor dos aliados e muito menos dos petistas que pediam sua cabeça. Ele estaria exclusivamente empenhado em demolir a barreira de desconfiança que separava o novo governo da liderança militar. Um ano e meio depois, de vez em quando ele ainda ouve uma provocação. Certa vez, o ministro ouviu do deputado e ex-presidente do PT Rui Falcão que seu trabalho não foi aprovado. “Eu sei. E, na verdade, o presidente me disse que você já contou isso a ele”, encolheu os ombros. Múcio avalia que completou a missão com sucesso. Em tese, portanto, agora ele poderia ser demitido. Ele ri discretamente quando questionado sobre esta possibilidade O Ministro da Defesa é um caso raro em que a aparente fragilidade sustenta uma resiliência invejável.
Publicado em VEJA em 25 de outubro de 2024, edição nº. 2916
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