Sem consenso, parlamentares reabrem debate sobre f…

Sem consenso, parlamentares reabrem debate sobre f…


Ao desvendar o maior esquema de corrupção da história do país, a Operação Lava-Jato revelou detalhadamente a relação de promiscuidade entre políticos e alguns grupos empresariais, caracterizada pela corrupção, desvio de recursos públicos e fraudes em licitações. A lógica era simples: em troca de um contrato superfaturado com o governo ou da aprovação de uma medida no Congresso, os empreiteiros faziam doações eleitorais a partidos e candidatos, tanto oficialmente quanto externamente, o chamado fundo secreto. A prática envolveu partidos de esquerda à direita, gerou bilhões de reais e resultou na prisão de algumas das pessoas mais poderosas da República. O escândalo foi tamanho que o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu, em 2015, proibir o financiamento de campanhas por pessoas jurídicas, alegando que o poder econômico privado desequilibrou as disputas nas urnas a seu favor. Para os ministros, era preciso quebrar esse ciclo, até para evitar a recorrência de casos como o do petrolão. A decisão parecia um divisor de águas, capaz de coibir — ou pelo menos inibir — os crimes e distorções que a motivaram. Não funcionou.

DESEQUILÍBRIO – Randolfe Rodrigues: “O financiamento público trouxe vícios” (Pedro França/Agência Senado)

Habituada a eleições dispendiosas, que muitas vezes serviam para enriquecimento pessoal do candidato, a classe política reagiu ao Supremo aprovando, em 2017, o financiamento público de campanha. Com o veto ao repasse de dinheiro pelas empresas, a nota fiscal foi jogada no colo do contribuinte, acompanhada da promessa de que a conta não seria tão alta. Em 2018, o fundo eleitoral público foi de 1,7 bilhão de reais. Em 2024, 5 bilhões de reais. Como cabe aos deputados e senadores definir o valor a cada eleição, o céu é o limite. Como se não bastasse o sangramento crescente no Orçamento da União, problemas do passado, como a prática dos fundos secretos, continuaram no novo sistema. Antes do primeiro turno da disputa municipal deste ano, a Polícia Federal apreendeu 20 milhões de reais em dinheiro que seriam usados ​​na compra de votos, o que levou algumas autoridades a falarem na necessidade de rever novamente o modelo de financiamento de campanha. É um debate necessário, apesar dos sinais de que, independentemente da regra adotada, não faltarão pessoas dispostas a contorná-la.

TRADIÇÃO – Dinheiro sujo: os fundos secretos continuaram a existir no novo sistema
TRADIÇÃO – Dinheiro sujo: os fundos secretos continuaram a existir no novo sistema (Polícia Federal/Divulgação)

O líder do governo no Congresso, senador Randolfe Rodrigues (PT-AP), que defendeu o financiamento público quando ele foi aprovado, quer agora rediscutir o tema. Ele afirma que o modelo atual não criou as condições esperadas de igualdade entre os candidatos porque a direção partidária, ao distribuir recursos, passou a privilegiar determinados quadros, causando desequilíbrios até dentro dos próprios partidos. Distorções importantes capturadas pela Lava-Jato também continuaram a ocorrer. “A adoção do financiamento público trouxe outros vícios, processos corruptos, mais casos de caixa dois. Não melhorou em nada o nosso sistema”, afirma Rodrigues. A participação de cada partido no bolo do fundo público eleitoral depende do tamanho do seu grupo de deputados federais. O maior grupo da Câmara, o PL de Valdemar Costa Neto e Jair Bolsonaro, recebeu 886 milhões de reais este ano. Em segundo lugar, o PT embolsou 620 milhões de reais, dos quais 30 milhões de reais foram repassados ​​no primeiro turno para a campanha do deputado federal Guilherme Boulos (PSOL) para prefeito de São Paulo, a mais cara do Brasil até hoje.

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Historicamente, o PT defende o financiamento público. A presidente do partido, deputada Gleisi Hoffmann, reiterou essa posição ao reagir à retomada do debate sobre o tema. “Trazer de volta as doações corporativas para as campanhas eleitorais seria um sério revés. Os fundos secretos e a compra de votos são crimes que devem ser enfrentados e punidos com rigor. Simples assim. O financiamento público é um avanço democrático contra a influência do poder econômico na política”, escreveu Gleisi em rede social. Os petistas foram derrotados no primeiro turno da eleição municipal, que tem peso importante na disputa pela Câmara em dois anos, já que prefeitos e vereadores são considerados os líderes eleitorais mais importantes na disputa pela vaga de deputado federal. Há o risco, portanto, de que a bancada federal do PT diminua após a eleição de 2026, o que resultaria em uma parcela menor do fundo público de financiamento de campanha. O petista Randolfe Rodrigues garante que esta situação não tem relação com a retomada do tema.

SEGURO COMPLETO – Valdemar: o PL, sozinho, teve direito a 886 milhões de reais de um total de 5 bilhões do fundo eleitoral
SEGURO COMPLETO – Valdemar: o PL, sozinho, teve direito a 886 milhões de reais de um total de 5 bilhões do fundo eleitoral (Roberto Casimiro/Fotoarena/.)

O senador defende um modelo híbrido, com transferências públicas e privadas, que poderá resultar em economia de até 80% para os cofres públicos. Em breve, pretende submeter a proposta ao PT e à base governista. “Acho que deveríamos adotar o sistema híbrido, que não pese no Orçamento e permita, dentro de regras bem estabelecidas, o financiamento privado de uma candidatura”, afirma o deputado federal Jonas Donizette, vice-líder do PSB na Câmara. Se for levada adiante, esta proposta enfrentará resistências. Relator do Orçamento da União de 2022, deputado Hugo Leal (PSD-RJ), figura dirigente do Centrão, afirma que o financiamento público deve ser mantido porque proporciona mais autonomia e independência aos candidatos ao não criar vínculos entre eles e instituições privadas. O argumento obviamente não leva em conta os laços cultivados à margem da lei, os mesmos que financiam a compra de votos à vista. “O senador Randolfe mostra-se arrependido porque o espetáculo dado em 2024 foi ruim. O fim da caixa dois envolve elementos imateriais, uma mudança de mentalidade do político”, afirma Marco Aurélio Nogueira, professor de ciência política da Universidade Estadual Paulista (Unesp).

Cada sistema de financiamento possui pontos positivos e negativos. O problema não está no princípio de cada um deles, mas nas distorções durante sua execução. No financiamento privado, há uma aproximação entre setores da sociedade civil, incluindo a área econômica, com partidos e políticos, o que facilita o monitoramento e a fiscalização de determinados lobbies nos poderes Executivo e Legislativo. Em teoria, o fundo secreto também se torna desnecessário. O risco é que a relação entre as partes se transforme, como aconteceu num passado recente, na compra de favores, muitos dos quais contrários ao interesse público. Em delação premiada, executivos da Odebrecht declararam que repassaram dinheiro a deputados e senadores para que votassem normas favoráveis ​​à empreiteira. Os valores foram muito superiores aos declarados à Justiça Eleitoral. O financiamento público, também em teoria, retiraria o dinheiro sujo das campanhas, inibiria a acção dos corruptores e reduziria a influência do poder económico privado nas urnas, mas isso também não aconteceu, pois ainda prevalecem os fundos secretos.

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DISTORÇÃO – Lava-Jato: empresários doaram recursos de olho nos benefícios
DISTORÇÃO – Lava-Jato: empresários doaram recursos de olho nos benefícios (Paulo Lisboa/Folhapress/.)

O debate é pertinente e não pode ignorar o fato de que, por melhor que seja a norma adotada, o apetite por recursos públicos ou privados tende a motivar irregularidades. A questão é reduzir os desequilíbrios no processo eleitoral e o custo para o eleitorado. “Todos os modelos têm vantagens e desvantagens, mas acredito que o modelo público tem uma desvantagem enorme, porque o dinheiro poderia ser usado para coisas mais úteis. Hoje, o dinheiro é distribuído à vontade dos chefes partidários. O Congresso encontrou uma solução simples, mas simplista”, afirma Carlos Velloso, ex-presidente do STF e do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). “Eram recursos que tinham de ser utilizados para habitação ou para ajudar os sem-abrigo que passavam fome. No modelo privado existem desvantagens, mas são controladas. Basta apertar a fiscalização”, completa. Inspeção é realmente uma palavra-chave. Sem ela, distorções como a utilização de recursos não contabilizados e aplicações laranja para desviar fundos continuarão como tradições nacionais – independentemente do modelo, seja ele público, privado ou híbrido.

Publicado em VEJA em 18 de outubro de 2024, edição nº. 2915



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