Operação Lava-Jato criou sistema clandestino para compartilhar delações em andamento

Operação Lava-Jato criou sistema clandestino para compartilhar delações em andamento


Grupo curitibano, liderado por Deltan Dallagnol, utilizou o sistema clandestino pelo menos entre 2016 e 2019. (Foto: Vinicius Loures/Câmara dos Deputados)

A Operação Lava-Jato de Curitiba criou um sistema compartilhado por promotores de diferentes estados para acesso coletivo aos termos e anexos de acordos de delação premiada, incluindo acordos não concluídos, apesar da obrigação de sigilo das colaborações e do princípio do promotor natural.

A ferramenta, mais uma criada para que promotores combinem formas de surpreender os investigados e, assim, forçar condenações aos réus, funcionava de forma clandestina, pois não há previsão legal para sua implementação, nem registro formal de sua existência.

O quadro foi batizado por Deltan Dallagnol, ex-coordenador da autodenominada força-tarefa “Sisdelatio”. O sistema foi criado informalmente no Paraná, a pedido do próprio Deltan, e funcionou pelo menos entre 2016 e 2019.

Tanto a Procuradoria-Geral da República quanto a Procuradoria-Geral da República do Paraná afirmaram à revista eletrônica Consultor Jurídica que não há registro da existência de “Sisdelatio”.

“Não existe no Ministério Público Federal nenhum sistema com esta denominação e/ou finalidade”, afirmou a Procuradoria-Geral da República do Paraná em nota. “Já tentamos confirmar, mas ninguém se lembra de um sistema com esse nome, nem localizamos nenhum registro”, informou o órgão.

Segundo ministros do Supremo Tribunal Federal ouvidos pela ConJur e subprocuradores que atuam no Distrito Federal, o compartilhamento é irregular. “Como a clandestinidade era regra, eu não tinha conhecimento desse procedimento”, disse um deles na reserva.

Segundo eles, a conduta, que além de antiética, é ilegal, fere os princípios constitucionais da legalidade, da moralidade e do devido processo legal, que garantem imparcialidade e justiça no processo.

O compartilhamento de termos e anexos de denúncias encerradas e em andamento ocorreu pelo menos entre procuradores de Curitiba e do Rio de Janeiro, segundo diálogos aos quais a ConJur teve acesso.

Em 7 de março de 2017, Deltan disse ao Ministério Público do Rio que existia um “supersistema” no qual o MPF incluía todos os termos do acordo de delação premiada e anexos, “incluindo acordos não fechados”.

Em seguida, Deltan convidou colegas de outros estados a também acessarem o sistema e incluírem termos de denúncias, criando um banco de dados unificado.

“Colegas do RJ, temos um supersistema em que colocamos todos os termos da delação premiada e anexos, inclusive acordos inacabados. Quer integrar ao sistema? Podemos unificar nossas bases e você também terá acesso total. Que tal?”, disse ele —os diálogos estão reproduzidos nesta reportagem em sua grafia original.

“Não sei se todos sabem, mas o Sisdelatio também tem anexos de acordos não fechados, que não devem ser utilizados para iniciar investigações, embora possam ser consultados, até para avaliar se a relevância mudou face a novas informações”, reforçou Deltan.

Eduardo El Hage, então coordenador da Lava-Jato no Rio, respondeu: “Acho ótimo, Deltan! Vou conversar com os outros colegas aqui.” Também estavam no grupo procuradores do Distrito Federal.

Desde 2016

O programa começou a funcionar em 2016. E sua criação foi solicitada por Deltan em 2015, segundo o próprio ex-procurador afirmou no livro “A Luta Contra a Corrupção”.

Em um trecho, ele conta que pediu a criação de um sistema para que ele pudesse buscar palavras-chave em depoimentos. Não há menção, porém, à partilha entre Estados.

“A necessidade de busca de nomes e palavras nos depoimentos e anexos às denúncias fez com que, ao retornar das férias de Natal de 2015, solicitei à equipe do Ministério Público do Paraná a criação de um novo sistema de busca, que foi batizado ‘Sisdelatio’”, disse Deltan no livro.

O sistema começou a operar em maio de 2016, segundo mensagem de Deltan aos colegas. “Sisdelatio: está operacional, já alimentado com a maior parte das colaborações”, afirmou numa mensagem datada de 21 de maio de 2016.

Com o tratamento irregular das denúncias em andamento, a procuradora da Lava-Jato Curitiba, Jerusa Viecili, pediu aos colegas que tratassem o material com cuidado, pois não era bom dar a impressão de que o MPF estava usando e compartilhando livremente colaborações que não foram aprovadas.

“Gente, cuidado ao usar o sisdelatio: há termos que estão no sistema mas não foram baixados formalmente do STF!”, afirmou em mensagem datada de 26 de julho de 2016, logo após a criação da ferramenta.

Segredo

O advogado Gustavo Badaró disse à ConJur que desde 2013 as denúncias são sigilosas, principalmente as em andamento. Com a lei “anticrime” (Lei 13.964/2019), explica, o sigilo foi reforçado.

O artigo 7º da Lei 12.850/2013 dispôs que “o acordo de delação premiada deixa de ser sigiloso a partir do recebimento da denúncia”.

Em 2019, a norma entrou em vigor com a seguinte redação: “O acordo de delação premiada e as declarações do colaborador serão mantidas em sigilo até o recebimento da denúncia ou denúncia criminal, sendo vedado ao magistrado decidir publicá-la em qualquer caso. ”. (ConJur)