Fantasma de Dona Santinha | VEJA

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“Vamos seguir CPF por CPF”, afirma o ministro da Fazenda, para evitar “dependência psicológica”. Não entendi se era só para quem recebe Bolsa Família, ou para todos os brasileiros. Mas fui em frente, grato pelo cuidado. No Congresso, a bruxa está solta. “É necessário proibir os aposentados”, diz um projeto. “Os idosos vão acabar como bingo, todos viciados!” Em outra proposta li que é preciso bloquear o uso de cartão de crédito. E banir pessoas que recebem benefícios. E também publicidade. De um senador ouvi que é preciso acabar com as apostas eleitorais. “Uma ameaça à democracia”, prevê. Imagine só, apostar em quem vai para o segundo turno em São Paulo ou BH. Ou se Trump vencer Kamala Harris. Na verdade, seria o fim da democracia.

Observando essas coisas, lembrei-me imediatamente de Dona Santinha. Reza a lenda que foi ela quem soprou nos ouvidos do presidente Dutra, que por acaso era seu marido, para mandar fechar os cassinos, “em nome da moral e dos bons costumes”, em 1946. Nunca soube bem se essa história era verdade. . Não importa. O fato é que a decisão deu certo. Até hoje, oitenta anos depois, grande parte, senão a maioria do mundo político, ainda pensa que os cassinos só vão causar problemas, que geram dependência, que vão destruir famílias, que os brasileiros não estão preparados, e assim por diante . E cabe ao Estado dar o salto. De minha parte, sou tremendamente cético em relação a tudo isso. Não creio que caiba ao governo proteger os adultos contra o vício de apostar em alguma coisa. Tive um conhecido que ficou viciado em corridas de cavalos por um tempo. Nas noites frias de Porto Alegre, lá ia ele, sozinho, ao jóquei. Eu perderia algum dinheiro e voltaria para casa como um cachorro molhado. Isso durou anos e nunca me passou pela cabeça que o governo tivesse algo a ver com isso. O mesmo vale para a internet. As pessoas são viciadas em idiotices, no TikTok, no YouTube. E até com compras de bugigangas em lojas online. Até o grande médico. Anna Lembke, autora de Nação Dopaminaconfessou outra semana, aqui em São Paulo, que já foi viciada em novelas românticas. Foi uma luta, mas ela aprendeu a dominá-la. É verdade que o governo pode criar condições para o Bolsa Família. Não é dinheiro de mercado. É uma concessão paga pelo contribuinte. Mas qualquer coisa que vá além disso pressupõe que cabe ao governo proteger os cidadãos da sua própria incapacidade de escolher o tipo de vida que querem levar. E então, de fato, as coisas ficam complicadas.

O Brasil é um pouco como Dona Santinha. Um país onde o paternalismo estatal não é apenas uma “cultura”, como ouvi ultimamente, mas uma instituição nacional. Ainda agora, em plena eleição, fui convidado para um debate sobre voto facultativo. Eu não fui. “Mas você é um dos poucos que defende isso, professor.” Então é. Lembrei-lhe que eu e praticamente todas as grandes democracias do planeta. Mas na verdade não fui para não ouvir as bobagens de sempre. A ideia de que o voto tem que ser obrigatório porque “não somos maduros”. Isto depois de 21 eleições, desde a redemocratização, que deve fazer de nós o povo mais lento do planeta para amadurecer. Ou ouça que “o voto facultativo prejudica os mais pobres”. A velha tese que associa – ad infinitum — pobreza e hipossuficiência. Tese em que cabe tudo. Não saber poupar, escolher uma escola, votar ou não votar, apostar ou não numa aposta. Tudo o que nós, intelectuais, decidimos encontrar em nome das pessoas cuja opinião rejeitamos solenemente.

Minha tese é que há um truque em tudo isso. Um jogo malicioso de poder em torno da tese da hipossuficiência. Um exemplo típico é o financiamento de campanhas eleitorais. A suposição geral é que os nossos partidos políticos pobres são incapazes de procurar o seu próprio financiamento junto dos eleitores. E os eleitores, por sua vez, não conseguem decidir se dão ou não dinheiro aos candidatos. Cada uma das partes poderia abrir seu próprio crowdfunding e pedir apoio. No passado recente, partidos tão díspares como o PSOL e o Novo tiveram relativo sucesso nisso, embora sejam muito menores que os partidos tradicionais. O problema é que tudo isso é um incômodo. E, claro, muito menos dinheiro. É mais fácil aprovar uma lei, em qualquer noite no Congresso, sem muito alarde. E depois debitar 5 bilhões de reais das contas dos cidadãos para o fundo eleitoral. Outro caso, ainda mais estranho, foi o da devolução disfarçada do imposto sindical. Nosso STF decidiu fazer uma inversão muito sutil: em vez de o sindicato ter o ônus de obter a aprovação do trabalhador, de recolher a contribuição (que é exatamente o sentido dado pela reforma trabalhista), agora é o trabalhador quem precisa ir depois e dizer que não quer. No meu caso tive que escrever uma carta, autenticar a assinatura e enviar pelo correio. Conclusão: sou insuficiente para dizer se quero contribuir, mas hipersuficiente para passar por uma pequena provação burocrática para recusar minha contribuição.

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“O paternalismo estatal não é apenas uma ‘cultura’, mas uma instituição”

O tema que talvez melhor reflita o nosso Estado Dona Santinha é o FGTS. Mesmo agora era uma questão de decisão na Suprema Corte. O ministro Barroso acertou ao dizer que não fazia sentido o governo captar 8% dos salários e depois pagar TR + 3% ao longo dos anos. E com isso, corrói as poupanças das pessoas. Em oito dos últimos dez anos, o fundo perdeu para a inflação. No ano passado, se tivesse liberdade para aplicar o dinheiro, o trabalhador teria alcançado facilmente um rendimento de 10%, em vez dos 4,8% que recebia. “Os acionistas são obrigados a receber remunerações extremamente baixas para financiar os investimentos governamentais”, disse o ministro. A decisão final foi garantir que a remuneração do fundo acompanhasse a inflação. O menor dos males, mas ainda assim Dona Santinha. A questão é por que ninguém pensou em pelo menos permitir que o trabalhador escolhesse onde investir o dinheiro? Digamos: entre uma cesta de papéis conservadores, em instituições devidamente autorizadas. Então é. Como sempre, ninguém pensou.

Em todos estes casos, a lógica é a mesma: aqueles que estão “na base”, trabalhadores, eleitores ou contribuintes, ficam com a hipossuficiência; para quem está “no topo”, sindicatos, partidos e o próprio governo, o dinheiro. E então, poder. O sequestro da prerrogativa de escolha. Portanto, a minha mensagem é esta: sempre que o nosso sistema de poder ensaia uma retórica paternalista, suspeitem. Toda vez que falam que o brasileiro é incapaz, não tem maturidade para ir ao cassino, decidir se vota, financiar candidato ou não, pagar o sindicato, colocar a poupança aqui ou ali, e o filho nesta ou em outra escola , digo sem pestanejar: desconfie. Não há sabedoria secreta por trás disso. Há apenas um grupo de pressão ganhando alguma coisa. No fundo é o fantasma de Dona Santinha, a madrinha da nossa hipossuficiência. Sempre convincente, sussurrando nos ouvidos do poder: “banir, multar, proteger essas pessoas… Caso contrário será um caos”. Aí vem o nosso desafio. Consertar esse fantasma, que vem das profundezas da história brasileira, e que ainda hoje está por aí, nos assombrando.

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Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper

Os textos dos colunistas não refletem necessariamente a opinião de VEJA

Publicado em VEJA em 4 de outubro de 2024, edição nº. 2913



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