Servidão voluntária | VEJA

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Eu estava andando pelo Chile quando nosso X, o antigo Twitter, desapareceu. “O que está acontecendo no Brasil?”, perguntam-me num almoço com colegas académicos. “Longa história”, respondi, “mas eles basicamente ainda estão salvando nossa democracia”. Algumas risadas, um certo espanto, e a conversa passou para outros assuntos. De minha parte, sempre achei o Twitter (muito antes de Elon Musk) uma rede tóxica, mas ótima para informação. Nos últimos anos selecionei alguns intelectuais que gosto de acompanhar. Niall Ferguson, Jonathan Haidt e assim por diante. “Agora é complicado”, fiquei pensando. É um pouco como as eleições americanas. Grande parte do debate ocorre no X. A melhor maneira é pedir ajuda. Alguém de um país menos neurótico, da vizinhança, mande alguns prints do que está falando. O almoço acabou e fui passear pelas ruas de Santiago, com aquela pergunta no ar: “O que está acontecendo no Brasil?”. A questão era um pouco mais complicada: como caímos na conversa de que “os instrumentos da democracia não eram suficientes para defender a própria democracia”? A curiosa ideia de que toda a censura praticada no país, pelo PCO, por Marcos Cintra, por Guilherme Fiuza, por aquela revista conservadora “que só tinha matérias jornalísticas”, por aquele grupo que protestou diante de um evento em Nova York, sempre foi necessário para nos salvar de alguma coisa. Mesmo agora, com ainda mais força. Dois anos após as últimas eleições.

O mesmo acontece com X. Ler a longa decisão sobre fechar a rede é uma lição sobre o país estranho em que nos tornamos. Em algum momento, há uma ordem proibindo um senador. Em um tweet, ele fala sobre o Tribunal de Nuremberg e diz que um delegado, que exerce funções de Estado (isso se aplicaria a qualquer servidor público?), não deveria obedecer a ordens ilegais. Os termos não são dos mais elegantes. Mas está lá. Essa é a opinião do senador. Em outro tweet, ele alerta que pode haver falta de segurança para a reunião do G20, já que os funcionários estão ocupados com “operações políticas”. É a visão dele. Está errado? Eu não faço ideia. Só estou dizendo que foi basicamente por isso que a Assembleia Constituinte, na década de 1980, deu imunidade aos nossos parlamentares para expressarem “quaisquer opiniões, palavras e votos”. Para que pudessem manifestar-se se tivessem algo relevante a dizer sobre o Tribunal de Nuremberga, o princípio da legalidade, ou se quisessem apresentar uma queixa. Sem a “curadoria” das autoridades. Sem o espectro da censura prévia. E por quê? Para que a nossa democracia fosse criada por um Parlamento livre de medo. Esquerda, direita, não importa. E cuja prestação de contas era realizada dentro de ritos bem definidos. O que chamamos de “devido processo”. Segundo uma “forma”, e não apenas uma finalidade. O que em última análise define a alma de uma república.

A questão crucial é antiga: o que diz a lei? Você não precisa ir muito longe para encontrar uma resposta. Há dez anos, o Congresso aprovou uma lei dizendo que cabe ao juiz determinar a retirada de conteúdo da internet. Nota: “conteúdo”, não contas inteiras. Está lá, no artigo 19 do Marco Civil da Internet. Conteúdo “com identificação clara e específica”, sob pena de “nulidade”. Por que isso acontece? Para evitar abusos. Para evitar censura prévia. Tudo isso foi longamente discutido e defendido como uma conquista da democracia. O mesmo se aplica à imunidade parlamentar. Não é um privilégio, mas uma espécie de bem público numa sociedade liberal. E aqui precisamos ser claros: quando as leis dizem “qualquer opinião” e autorizam a remoção de “conteúdo”, e não de pessoas, não é brincadeira. A lei é expressa através de palavras. Quando relativizamos o significado das palavras, o que relativizamos, na verdade, é a força dos direitos. E é precisamente isso que não devemos fazer.

Há um lado teórico na decisão do STF, sugerindo que o “princípio do dano”, formulado por JS Mill em seu Sobre a liberdadepoderia justificar o tipo de censura praticado hoje no Brasil. A lógica: dado que uma autoridade considera que um discurso pode causar danos a terceiros, a proibição é justificada. Isto incluiria categorias muito abertas, como discursos de “ódio” ou “antidemocráticos”. Está tudo bem, com um detalhe: o argumento de Mill vai na direção oposta. O que Mill quis dizer foi precisamente que não se deve censurar alguém só porque expressou uma opinião “odiosa”, seja lá o que isso signifique. Mill fez uma distinção bem conhecida para explicar estas coisas: “Uma opinião”, disse ele, “de que os comerciantes de milho fazem os pobres morrer de fome não deve ser molestada quando é simplesmente divulgada na imprensa”. Por mais que alguém discorde desta opinião, ou ela possa indiretamente causar algum dano futuro, ela deve ser admitida. Sua punição só deveria vir quando for dita “para uma multidão enfurecida em frente à casa de um negociante de milho”. A imagem não é um mero detalhe. As palavras constituem crimes apenas quando envolvem um risco claro e imediato.

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“Ao relativizar o significado das palavras, relativizamos os direitos”

O curioso de tudo isso é o apoio da sociedade. Algo que me lembrou, uma noite, um pequeno livro perdido no tempo. O discurso sobre a servidão voluntáriaescrito por um jovem e inquieto, Étienne de La Boétie, amigo de Montaigne, na França na década de 1550. O livro baseia-se numa visão do jovem La Boétie: nenhuma tirania sobrevive sem aceitação popular. É uma premissa lógica. Se as pessoas se recusarem a obedecer, o poder será destruído. A partir daí, ele se pergunta: por que as pessoas aceitam isso? O Brasil, obviamente, não vive a tirania. Nosso problema é muito mais sutil. É a aceitação desta estranha “militância da democracia”, cuja pedra angular, por mais curiosa que seja, é um certo jogo com as regras de direito. E por isso vale a pena lembrar de La Boétie. O seu livro antecipa o paradoxo da acção colectiva: todos podemos desejar a liberdade, mas, na urgência da vida, as coisas não funcionam assim. Vale a pena, para um jornalista, criticar duramente uma medida de censura? Vale a pena um jurista contestar a decisão de uma alta autoridade judiciária que julgará seu caso em breve? E para um militante que não quer nada mais do que ferrar o seu inimigo, faz realmente sentido defender o seu “direito à expressão”? Talvez seja isso. Mistura de medo, interesse, comodidade. O fato é que fui lá, até minha estante, limpei um pouco a poeira e reli meu antigo La Boétie.

O que pode ajudar-nos é que estamos perante uma experiência sem precedentes na nossa democracia: não meia dúzia, mas um país inteiro bloqueado, como um bando de crianças grandes, numa importante rede de debate público. E talvez algum caminho surja daí. O bloqueio de X afetou o dia a dia de muitas pessoas, o acesso à informação e o poder das pessoas de dizerem o que pensam. E talvez seja por isso que vejo muita gente refletindo. Querendo entender essa pergunta me fiz, caminhando pelas ruas de Santiago. Para o que, confesso, ainda não consigo encontrar uma boa resposta.

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Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper

Os textos dos colunistas não refletem necessariamente a opinião de VEJA

Publicado em VEJA em 13 de setembro de 2024, edição nº. 2910



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