“Proibir é sempre pior”, diz o autor infanto-juven…

“Proibir é sempre pior”, diz o autor infanto-juven…



Conhecido por diferentes gerações de leitores e com seus livros adotados oficialmente em programas pedagógicos públicos e privados, Pedro Bandeira82 anos, é famoso na literatura nacional. Junto com a contemporânea Ana Maria Machado, de 82 anos, e a decana Ruth Rocha, de 93, formam, há décadas, a tríade mais influente e premiada da literatura infantil e juvenil, com centenas de obras publicadas no país e traduzidas em diferentes idiomas. O autor estudou publicidade antes de embarcar no jornalismo. Ele lançou seus primeiros títulos infantis em 1983, O dinossauro que fez Woof e Miar é proibidomas só abandonou a vida de repórter no ano seguinte, após o sucesso de A Droga da Obediência.

O livro é o primeiro do grupo de amigos chamado “os karas”, que protagoniza outros cinco títulos. A obra já vendeu mais de 3 milhões de exemplares e chega à 100ª edição —um marco para o mercado editorial. Presente em 27ª Bienal Internacional do Livro de São Paulo Para participar de mesas sobre literatura infantil, Bandeira está longe de aparentar a idade que tem. Ele fala rápido e muito, dando pouco tempo para que seus interlocutores pensem e respondam. Ele também continua com um raciocínio aguçado, combinando diferentes referências e contextos, e com bom humor.

Autor de clássicos infantis como A marca de uma lágrima (1985), O Fantástico Mistério da Feiurinha (1986), O mistério da fábrica de livros (1994), entre outros, conversou com VEJA sobre censura, uso de celular, adaptações de livros, educação infantil e um tema muito importante em sua vida, a liberdade. “Ser livre é respeitar a liberdade dos outros”, disse ele. Confira a conversa:

Hoje em dia a leitura e até o hábito de ouvir histórias têm um concorrente poderoso: o celular. Como competir pela atenção das crianças e dos jovens? Antigamente não existiam celulares, mas existia televisão. Mas se uma mãe dissesse: ‘meu filho, vem aqui que vou te contar uma história’, ele saía da televisão. Acontece que os pais aproveitam a situação e vão fazer outra coisa. Qualquer criança prefere a companhia da mãe ou do pai ao celular. Temos que comunicar com as crianças e jovens que dependem de nós. Dê atenção, chame, crie um momento. Não podemos culpar os objetos. A televisão e o celular são ruins? Eu uso meu celular e assisto televisão, eles são ótimos. Agora, se a criança é viciada e não faz mais nada, aí tem problema. Se ela fica trancada no quarto o dia todo lendo, há outro problema. O mundo é diverso, é preciso ter leitura e celular.

Você tem alguma palavra para os pais que desejam ensinar aos filhos o hábito da leitura? Não podemos nos fechar como adultos. Muitos adultos fecham-se nos seus próprios mundos, separados dos filhos. ‘Ah, preciso ganhar mais dinheiro, preciso trabalhar mais’. Uma criança às vezes espera o dia todo para contar algo que aconteceu na escola e esse momento não existe em casa. Os pais ficam exaustos ou com preguiça e dão o celular para o filho, resolvendo diversas situações como essa. A culpa é do celular ou dos pais? Temos que tentar ajudar a próxima geração a ser melhor. Isso é ser cidadão, isso é ser pai.

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Recentemente temos visto episódios de censura contra livros infantis e juvenis. O livro infantil Dispositivo Sexual e Co. foi censurado em diversas cidades e acusado de fazer parte de um suposto “kit gay”. Há alguns anos, o então prefeito do Rio, Marcelo Crivella, encomendou a coleção de uma história em quadrinhos que trazia a cena de um beijo entre rapazes. E há outros episódios semelhantes. Como você vê esse movimento? Sinceramente, não sei se está em alta ou se sempre existiu. Uma coisa que certamente aumentou foi a publicidade destes episódios de censura. E isso é bom porque no passado censuraram e muitos nem sabiam disso. Quem defende a censura tem a liberdade de pensar o que quiser, até bobagens. Se ela achar que um livro faz mal à filha, a criança não terá acesso a ele. Mas ela não pode impor a sua vontade às outras 40 crianças da sala de aula em nome da liberdade. Isto é ditadura. Ser livre significa respeitar a liberdade dos outros.

Você já teve problemas com a censura de suas obras. Você poderia falar sobre isso? Tem um livro meu que é um best-seller [Mariana, menina e mulher, de 2016]mas tem a palavra calcinha e seções sobre puberdade e menstruação. Teve um grande impacto nas escolas. Escrevi a história de uma menina e sua entrada na puberdade. Na história, a colega já menstruou e ela não. Então, ela compra um bloco e coloca na bolsa para todo mundo ver. Seus seios não cresceram tanto quanto os da cola e ela usa acolchoamento para fazê-los parecerem maiores. Essas coisas que as meninas dessa faixa etária sempre fizeram e ainda fazem hoje. Muitos pais diziam que filho e filha não deveriam ler essas coisas, reclamavam com a professora. Teve um pai que fez boletim de ocorrência na delegacia, teve muitas reclamações nas escolas, pais me xingando, dizendo que eu era desviante.

E como você lida com isso? Sempre dou o mesmo conselho para essas pessoas: ajudem seus filhos e filhas a crescer. Por que não falar sobre puberdade e adolescência com cuidado e honestidade? Eles vão crescer, serão adultos, é dever dos pais e da escola ajudar nesse processo. Se ninguém disser nada, ouvirão informações de bocas sujas na rua. Eles podem ouvir e aprender muitas bobagens e preconceitos. É isso que esses pais querem para seus filhos? Houve um casal de pais religiosos que convenceram a professora a adotar outro livro para a filha. O resto da turma não reclamou e essa foi a solução que a escola encontrou. Você sabe o que aconteceu? A menina ficou curiosa e leu o livro proibido. Proibir é sempre pior.

Paralelamente ao movimento de censura, há outro de reedição de obras antigas sem termos considerados ofensivos. Nos EUA republicaram Mark Twain e no Reino Unido, Roald Dahl. O que você acha desse processo de reescrita de livros infantis? Os Irmãos Grimm, quando escreveram os contos, ouviram muitas histórias tradicionais e folclóricas que circulavam na época. Eles escreveram como folcloristas, não como literatura infantil. As histórias originais são muito cabeludas, impublicáveis ​​para crianças. A história original de Branca de Neve termina com os anões pegando a bruxa, prendendo-a dentro de um barril e jogando-a em uma cachoeira para que ela caia nas pedras e morra. Nossa, vamos contar isso para uma criança? Não é necessário. Na história Chapeuzinho Vermelho, o lobo na verdade come a velha e dá pedaços de carne humana para a menina comer também. Ele dá a Little Red um copo do sangue de sua avó para beber, dizendo que é groselha. E ela manda a menina tirar a roupa e ir para a cama com ele! É pesado porque foi assim que os contadores de histórias na Alemanha o contaram. Porém, vamos contá-lo exatamente assim? É natural fazer adaptações.

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Aqui no Brasil, depois que Monteiro Lobato caiu em domínio público, saíram edições sem os termos racistas. Você também fez um. Você poderia nos contar sobre esse trabalho? eu adaptei O nariz reinade Lobato. Se retirar os trechos em que Emília chama tia Anastácia de “negra beijinho” ou faz outros comentários racistas, não muda nada, a história fica lá. Por que Emília tem que xingar? Emília foi uma boneca que começou a falar e nasceu com preconceito racial? É a autora quem fala ou ela é o alter ego de Narizinho, a pessoa que a criou? Então, Narizinho é racista? Exclui os palavrões, não acrescenta nada à narrativa, apenas confunde e não faz mais parte do nosso tempo. Ficou melhor, mais contemporâneo. Lobato fez muitas coisas muito boas e, assim como os Grimm, há histórias que eles deixaram e que não funcionam mais, foram esquecidas. Os que permaneceram merecem tratamento especial para os leitores atuais. Mas mesmo com adaptações, sou a favor de manter sempre os livros originais. Não para que as crianças os lessem, mas para que os adultos consultassem e estudassem como eram as sociedades em que viveram os Grimm e os Lobato.

Seu livro A Droga da Obediência Teve mais de noventa edições e continua a ser amplamente lido. Você vê alguma mudança na recepção do livro entre a época em que foi lançado, em 1984, e hoje? Acho que o impacto é o mesmo porque o livro é uma metáfora do autoritarismo. Quando fui jornalista na ditadura, sofri muito com a censura. Eles nos disseram o que poderíamos assistir, ler. Isso foi terrível. Escrevi este livro como uma metáfora da ditadura, da estupidez de quem quer controlar tudo e todos. As crianças que se aproximam da adolescência querem libertar-se de casa, dos pais, querem encontrar o seu próprio caminho. O livro fala sobre isso, sobre a liberdade de ser e existir, mas com responsabilidade. Esse sentimento é o mesmo há 40 anos e hoje.

Muitos de seus livros falam sobre emoções e sentimentos, coisas que as crianças estão aprendendo a identificar e a lidar. Como é escrever sobre algo tão etéreo para crianças e adolescentes? A literatura tem que tocar os sentimentos humanos, tem que comunicar através dos sentimentos. Um adolescente tem emoções e curiosidades diferentes de um menino de 8 anos. Temos que saber reconhecer isso. Em que fase esse garoto está para que eu possa falar com ele? Quando eu me comunico, quando o escritor comunica, ele tem que comunicar com o sentimento, não com a razão. A razão aparece quando queremos ensinar algo. A boa literatura não quer ensinar nada, quer discutir, dialogar com o leitor. Shakespeare o escreveu há 400 anos e ainda existe hoje. Ele fala de amor, ciúme, ganância, ambição, sempre sobre sentimentos humanos.

Já disse em comunicado ao Museu da Pessoa que “é preciso aprender a desobedecer”. Você poderia explicar melhor esse conceito de aprendizado por meio da desobediência? O amadurecimento é gradual. Quando temos cinco anos, é bom obedecer. Papai fala: ‘meu filho, não toca nisso, você vai se queimar’. É verdade, se ele se mexer, vai se machucar. Mas com o tempo, não podemos obedecer cegamente a tudo e a todos. Devemos ter senso crítico suficiente para aceitar ou recusar. Você precisa se preparar para poder julgar e dizer não quando necessário. Dizer “sim” é fácil, dizer “não” é difícil.

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