Mais de 60 anos desde a sua estreia original, o clássico Bonito, mas comum, de Nelson Rodrigues (1912-1980), ganha nova produção – e continua despertando sentimentos polêmicos no público. A polêmica cena de estupro cometida por cinco homens é muito poderosa. Em exposição no Teatro Nelson Rodrigues, no Rio, Lorena Comparato34, interpreta Maria Cecília, que forma um triângulo amoroso com Ritinha (Sol Miranda) e Edgard (Emílio Orciolo Netto). Em conversa com o coluna PESSOASLorena aborda as complexidades do texto de Rodriguiano, explica por que chorou em ensaio recente e diz que sofre assédio diariamente.
Quanto Bonito, mas comum ainda atual? É um texto clássico de Nelson Rodrigues, que fala sobre essa burguesia extremamente doente, prejudicial à sociedade. É uma burguesia racista, misógina, classicista, que só gira em torno de dinheiro, certo? A peça conta a história de Edgard, um menino que recebe um convite para se casar com a filha do dono da fábrica, Maria Cecília. Ela sofreu um acidente. Ela foi estuprada por cinco caras e precisa se casar com alguém honesto. Mas Edgard está apaixonado por Ritinha, sua vizinha.
Nelson sempre causa polêmica. Por que as pessoas ainda ficam surpresas com o texto hoje? É uma peça polêmica, porque Nelson Rodrigues é um autor polêmico. As mulheres de Nelson são muito fortes, protagonistas, complexas, guerreiras… Elas têm desejos sexuais, traem. Espero que quem vem criticar a peça veja o contexto e entenda tudo o que falamos. Porque, ao mesmo tempo que falamos de uma sociedade que reprime extremamente o desejo sexual feminino, entendemos as consequências dessa repressão. E estamos num momento importante para criticar esta burguesia branca, racista, misógina e homofóbica. Meu personagem cai nesse lugar.
Como foi trabalhar nesse tema de estupro? É muito difícil. Hoje, por acaso, tive um ataque de choro no ensaio. É delicado lidar com esse tema, e não é só uma cena. Fala-se sobre vários tipos de abuso e assédio ao longo do programa. Diferentes tipos de violência social. Mas uma coisa que me deixa segura é a direção e meus parceiros de cena, homens que entendem a seriedade do assunto. É sempre importante lembrar que estou ali representando um grande número de mulheres que já morreram ou ainda estão morrendo por causa desse desconhecimento sobre as causas das questões de gênero no país.
Você já sofreu violência? Sofri muito assédio em diversas situações da minha vida e continuo sendo assediada diariamente, como a maioria das mulheres. Hoje tenho mais cuidado, paciência e voz para denunciar. Há coisas pelas quais passei em silêncio que hoje luto para não vivenciar novamente. Falando de assuntos complicados como esse, trago luz para que outras pessoas não passem por isso ou se sintam sozinhas. Somos muitos e especialmente os homens que precisam se alfabetizar para melhorar as interações sociais.
Como mulher, o que você acha de Nelson Rodrigues? Acho que ele é um cara extremamente complexo, sempre foi do contra, falava coisas polêmicas com a esquerda e com a direita. Vejo personagens muito complexos, que têm dentro de si o mal e o bem, mas, ao mesmo tempo, Nelson nunca deixa de colocar o dedo na ferida. Temos grandes vilões na nossa peça, e esses vilões são a burguesia.
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