Não há razão para não nos perturbarmos com a aparente (às vezes não apenas aparente) confusão administrativa que frequentemente assola a Administração Pública brasileira. Além das complexidades inerentes à especialização de tarefas e ao próprio arranjo federativo, esse “vai e volta” de decisões e autorizações e licenças e revogações e suspensões mantém acordados aqueles que muitas vezes têm que lidar com o setor público. A questão torna-se ainda mais séria, contudo, quando se trata do poder sancionador.
Nesse campo, o que muitas vezes se verifica é a imposição de sanções cumulativas, por diversos órgãos e esferas, derivadas de um mesmo fato, sem observar o princípio constitucional do non bis in idem, que está reconhecidamente implícito na cláusula constitucional do devido processo legal . (Constituição Federal, art. 5º, LIV). Existem multas das mais diversas fontes, aplicadas pelos mais diversos órgãos, muitas vezes sem nem perceber que outro órgão sancionador já puniu o mesmo autor, pelo mesmo fato, e nos mesmos fundamentos…
Embora este seja um problema atávico da própria estrutura legislativa e administrativa brasileira, não passou despercebido à doutrina mais atenta e à jurisprudência mais criteriosa. A discussão, aliás, nem é nova: regras sobre a dosimetria das sanções administrativas, levando em conta decisões de diferentes agências reguladoras, por exemplo, preocupam setores há pelo menos duas décadas. Ver, na mesma linha de raciocínio, a preocupação que foi manifestada pelo legislador ao reformar a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, no art. 22, §3º, ou na Lei de Improbidade Administrativa (Lei nº 8.429, de 1992), quando, por meio da Lei nº 14.230, de 2021, buscou-se dar algum tratamento jurídico à sobreposição de restrições aos direitos políticos decorrentes da inelegibilidade e punição por má conduta. Independentemente do destino daquela regulamentação específica, a mensagem do legislador foi clara de que é necessário encontrar um tratamento legal e constitucionalmente adequado para evitar a dupla punição.
Em matéria de regulamentação da inteligência artificial (IA), é notável a possibilidade de que essa sobreposição prejudicial de penalidades resulte das sanções aplicadas pela “autoridade competente” referida no Projeto de Lei (PL) que visa regulamentar o tema (PL nº 2). 2.338, de 2023) e as impostas, por exemplo, pela Autoridade Nacional de Proteção de Dados Pessoais (ANPD). Com efeito, existe uma grande possibilidade de que, por exemplo, o uso indevido de ferramentas de IA também constitua uma infração à LGPD – e esta dupla infração deve ser levada em conta para fins de agravamento da sanção isolada, da mesma forma deve ser levadas em consideração para evitar a “duplicação” de sentenças.
Dado o problema, também é necessário oferecer uma proposta de solução. Bem, então.
Uma possível solução é justamente a inspiração em mecanismos que busquem minimizar a “coça-cabeça” na Administração Pública em geral. No Direito italiano, por exemplo, a Lei do Procedimento Administrativo criou a figura da confernza de servizi (art. 14 da Lei italiana nº 241, de 7 de agosto de 1990), que, através da Lei Delegada nº 180, de 20 de agosto de 1990, 2011, do Estado de Minas Gerais, foi transposto com adaptações para a esfera federal. Foi nesse contexto que a Lei nº 14.210, de 2021, inseriu a figura da decisão coordenada na Lei de Processo Administrativo Federal (Lei nº 9.784, de 1999).
Através desta figura (arts. 49-A a 49-G da Lei do Processo Administrativo), quando a decisão precisar ser tomada por vários órgãos ou entidades, ela poderá ser tomada em conjunto, para agilizar o processo, garantir eficiência e melhorar o processo em si. qualidade deliberativa. Por louvável cautela do legislador da época (o PL, apresentado em 2015, era de autoria do então senador da República e hoje ministro do TCU, Antonio Anastasia), previa-se que a decisão coordenada não seria aplicada a processos administrativos sancionatórios – até pelo simples fato de a Lei nº 9.784, de 1999, tratar apenas de processos administrativos em geral, aplicando-se aos processos sancionatórios apenas de forma subsidiária.
Acontece que, na esteira das discussões sobre a regulamentação da IA em nosso sistema, torna-se cada vez mais premente a necessidade de abordar a questão do bis in idem na esfera administrativa.
Por isso propomos utilizar uma lógica semelhante à da decisão coordenada para prever que, em matéria de inteligência artificial, quando houver alguma sobreposição com outros tipos de legislação administrativa sancionatória, o interessado possa levantar a possibilidade de uma decisão conjunta sendo tomadas, a fim de evitar duplas punições administrativas e também garantir uma dosimetria mais adequada de possíveis sanções.
Pela nossa proposta, uma nova Seção poderia ser inserida no Capítulo IX do PL nº 2.338, de 2023, especificamente para tratar da decisão conjunta no processo administrativo sancionatório. Diferentemente do que ocorre na Lei de Processo Administrativo Federal, a decisão conjunta, aqui, não será uma mera discricionariedade das autoridades com poder decisório: caso se verifique o risco de dupla punição pelo mesmo fato, a decisão final deverá ser tomada conjuntamente.
A análise do enquadramento ou não dessa hipótese, porém, cabe à autoridade que conduz o processo, caso seja provocada pelo interessado. Qualquer indeferimento do pedido de decisão conjunta requer naturalmente uma justificação concreta, mesmo em consonância com o disposto no actual art. 50 da Lei de Processo Administrativo Federal.
Em qualquer caso, se se considerar que será efetivamente tomada uma decisão conjunta, as autoridades que conduzem os processos continuarão a fazê-lo separadamente, na fase pré-julgamento. Só depois de concluído este processo é que as autoridades se reunirão para tomar a decisão conjuntamente.
Por fim, é necessário prever que, em caso de eventual condenação, a dosimetria das sanções deverá ser realizada de forma que as penas previstas em cada legislação sejam compensadas entre si, levando em conta as peculiaridades do caso específico. Afinal, esse é o cerne da proposta: evitar a dupla punição administrativa pelo mesmo ato.
Na nossa proposta, ainda, caberá à autoridade competente mencionada no PL de Inteligência Artificial regulamentar a forma e o procedimento através do qual será operacionalizada esta decisão conjunta.
Eis então, objetivamente, a nossa proposta editorial:
“CAPÍTULO IX
SEÇÃO IV
A Decisão Conjunta no Processo Administrativo Sancionador
Arte. XX No âmbito da Administração Pública Federal, quando um mesmo fato violar normas do Direito Administrativo cujas sanções sejam aplicáveis a órgãos ou entidades diferentes, a decisão final deverá ser tomada em conjunto, para que não haja dupla punição.
§ 1º Cabe ao interessado provocar cada autoridade responsável a aplicar a sanção, para que esta possa decidir sobre a relevância de uma decisão conjunta.
§ 2º A rejeição do pedido requer justificativa de fato e de direito.
§ 3º Caso a solicitação seja considerada procedente, os órgãos ou entidades envolvidas deverão:
I – realizar a instrução processual separadamente;
II – proferir decisão única e conjunta após o término da instrução isolada.
Arte. XX Para a dosimetria das possíveis penalidades, os órgãos ou entidades proponentes da decisão conjunta deverão atuar de forma que as sanções previstas em cada legislação sejam compensadas entre si, consideradas as peculiaridades do caso concreto.
Arte. XX A Autoridade Competente deverá regulamentar o procedimento descrito nesta Seção.
Arte. XX O inciso II do § 6º do art. 49-A da Lei nº 9.784, de 27 de janeiro de 1999.”
Com a inclusão desse aspecto no PL nº 2.338, de 2021, o legislador não estará tratando apenas de um tema que há muito atormenta a doutrina, a jurisprudência e a práxis administrativa brasileira. Estará também garantindo que a nova Lei possa nascer alinhada ao que há de mais moderno no direito administrativo comparado, além de estar plenamente adaptada aos princípios constitucionais do devido processo legal e do non bis in idem.
* Flávio Unes – Doutor e Mestre em Direito Público pela Universidade Federal de Minas Gerais. Chefe do Departamento Jurídico da FIESP. Presidente do Instituto de Direito Administrativo do Distrito Federal. Professor do Mestrado Profissional do IDP (São Paulo). Sócio de Silveira e Unes Advogados. Foi Assessor Especial da Presidência do Supremo Tribunal Federal, Assessor do Ministro do Superior Tribunal de Justiça, Assessor do Ministro do Tribunal Superior Eleitoral. Ex-Presidente da Comissão Especial de Proteção de Dados da OAB Federal. Foi Assessor Parlamentar no Senado Federal e na Câmara dos Deputados. No Governo de Minas (2011-2012), atuou como Secretário de Estado Adjunto de Assuntos Civis e Relações Institucionais.
* João Trindade – Doutor em Direito Público pela Universidade de São Paulo. Consultor Legislativo do Senado Federal. Professor de Direito Constitucional nos cursos de Graduação, Mestrado e Doutorado do IDP. Advogado e revisor.
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