Um homem perseguido por uma mulher obcecada. Esta é a premissa Rena bebêum sucesso da Netflix que caminha no limiar entre a ficção e a realidade: escrita e estrelada por Richard Gadd, a trama é baseada na vida do autor, mas “certos personagens, nomes, incidentes, locações e diálogos foram ficcionalizados”, alertam os créditos. Chamada Martha (Jessica Gunning) na série, a perseguidor Donny (Richard Gadd) não atende por esse nome na vida real — nem tem condenação criminal, como visto na série, admitiu recentemente a Netflix após ser processada pela advogada Fiona Harvey, que afirma ser a inspiração do perseguidor. A confusão em torno Rena bebê ilustra uma questão urgente. Numa altura em que o rótulo “baseado numa história verídica” se tornou uma mais-valia para o streaming e uma garantia de ruído nas redes, a verdade tornou-se objecto de glamourização por vezes excessiva, o que impõe novos dilemas à dramaturgia.
A regra é não haver regras: Netflix e a cultura da reinvenção – Reed Hastings e Erin Meyer
Rena bebê é um daqueles casos em que a precisão factual foi aparentemente sacrificada em nome do roteiro. Harvey não foi nomeado pela Netflix e Gadd afirma que Martha é uma personagem fictícia. Mesmo assim, Harvey diz que foi identificada online e até recebeu ameaças de morte. Alvo de ordem judicial por suas interações com Gadd, ela não foi condenada nem presa na vida real e acusa a plataforma de difamação e violação de direitos. Por isso, ela pede 170 milhões de dólares de indenização, num processo que descreve a produção como “uma mentira destinada a atrair mais espectadores”.
Meu amigo Dahmer – Derf Backderf
É claro que esta não é a primeira vez que histórias com raízes na realidade afetam os envolvidos em maior ou menor grau. Também um sucesso na Netflix, Dahmer dramatiza a trajetória sombria do serial killer que assassinou dezessete jovens — e foi recebido com protestos de familiares das verdadeiras vítimas. No brasil, Soldo Prime Video, que levou para as telas a vida do criminoso Pedro Dom (1981-2005), irritou a família materna do criminoso carioca: sua mãe e sua irmã se opuseram à série e acusaram a trama de romantizar o policial Victor Dantas (1944-2018) — o pai do criminoso, que esteve envolvido na produção.
As soluções para problemas como este não são simples. Está actualmente a ser debatida em Inglaterra uma nova lei que, em teoria, daria perseguidor de Rena bebê a oportunidade de exigir respeito pela sua história. Quando se trata da vida real, você definitivamente precisa ser responsável na tela. Mas tome cuidado também para que isso não se torne uma ameaça à liberdade de retratar histórias de interesse, dando origem a narrativas encobridas. Nestes casos, cautela e bom senso ainda são o melhor remédio. A verdade não tem preço.
Publicado em VEJA em 9 de agosto de 2024, edição nº 2.905
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