Lula realizou um feito político: levou a crise da ditadura de Nicolás Maduro para o seu gabinete no Palácio do Planalto. Fez isso no sábado (27/7), quando despachou a Caracas seu assessor de política externa, Celso Amorim, visto como chanceler de fato no Palácio Miraflores, centro de negócios da cleptocracia venezuelana.
Aos 82 anos, Amorim acumula quase seis décadas de experiência em diplomacia. Dirigiu três vezes o Itamaraty. E tem 45 anos de credenciais partidárias —passou do MDB durante a redemocratização para o PMDB até 2009, e, desde então, é filiado ao Partido dos Trabalhadores.
Lula e Amorim são parceiros numa narrativa ideológica envelhecida, na qual a Venezuela do falecido coronel Hugo Chávez e do seu sucessor Maduro é um campo de batalha pós-Guerra Fria para conter o avanço do imperialismo norte-americano no continente.
Completam 21 anos de aliança com o chavismo e com o silêncio obsequioso da esquerda sul-americana em relação ao colapso da democracia e à destruição económica do país vizinho ao norte, onde o regime ditatorial de Maduro está a causar a maior crise migratória da história recente — os números do Êxodo variam, dependendo da fonte, entre 2,5 milhões e 6 milhões de venezuelanos.
Em 2003, Lula e Amorim apostaram na obediência de Chávez à liderança “natural” brasileira. Ficaram surpresos com as palavras e recursos do coronel venezuelano, golpista (1992) e sobrevivente de um golpe (2001). Usou os petrodólares como arma política, vendeu-os a preços baixos a Cuba, à Nicarágua e a alguns outros países da América Central, financiou campanhas eleitorais da Patagónia ao Rio Grande e legitimou-se como líder regional.
Chávez aliou-se a Néstor Kirchner, então presidente da Argentina. Juntos, desmantelaram o principal projecto continental dos EUA, a zona de comércio livre (ALCA). Posteriormente, Lula assumiu o comando da União de Nações Sul-Americanas (Unasur), principal iniciativa diplomática de Brasília na época, imaginada como um contraponto à influência de Washington em organizações como a Organização dos Estados Americanos (OEA).
Lula insistiu em ampliar os laços com Caracas. Ele acreditou na parceria com Chávez, por meio da petroleira estatal PDVSA, e induziu a Petrobras a investir na refinaria pernambucana Abreu e Lima —uma homenagem ao brasileiro que esteve com Simon Bolívar nas guerras de independência. O projeto começou com um orçamento de 2,5 mil milhões de dólares e já engoliu 18 mil milhões de dólares. A refinaria está inacabada e a estatal venezuelana nunca contribuiu com um centavo para o projeto.
Lula, Amorim e a liderança do PT ajudaram Chávez e seu sucessor Maduro nas campanhas eleitorais. Lula chegou a interferir diretamente nas eleições venezuelanas, participando de comícios de Chávez.
Quando morreu, em 2013, Lula estava fora do poder, mas mobilizou o governo Dilma Rousseff, o PT e amigos empresariais para apoiar a eleição de Maduro como sucessor. Recebeu quase 35 milhões de dólares em “ajuda” da construtora Odebrecht, que, na época, tinha contratos com o governo para obras no valor de mais de um bilhão de dólares.
A Odebrecht distribuiu cerca de 115 milhões de dólares a políticos locais, governamentais e da oposição. Chegou a pagar os custos da equipe de marketing político brasileira, indicada por Lula e formada em parte por assessores do PT. Em pelo menos um caso de brasileiros em campanha, relatado nos tribunais brasileiros, Maduro insistiu em pagar pessoalmente: 800 mil dólares, em dinheiro. Outras empresas contrataram dirigentes do PT como consultores para o “clima de incerteza” na Venezuela.
Em abril de 2013, o Conselho Eleitoral Chavista proclamou a eleição de Maduro com 50,6% dos votos, contra 49,1% atribuídos ao candidato da oposição Henrique Capriles. Na contabilidade oficial, a diferença foi de cerca de 220 mil votos entre 19 milhões de eleitores inscritos, com participação nas urnas de 79,7%. A oposição protestou porque faltava contar mais de um milhão de votos. O governo Dilma Rousseff rapidamente endossou a legitimidade da vitória de Maduro.
Nas eleições presidenciais seguintes, em Maio de 2018, os partidos da oposição decidiram não participar. Maduro, na prática, competiu contra si mesmo. O Conselho Eleitoral Chavista o proclamou vencedor com 67,8% dos votos. Segundo números oficiais, ele saiu das urnas com 1,4 milhão de votos a menos do que havia obtido cinco anos antes.
A eleição foi aplaudida pelo PT e aliados no Brasil, mas formalmente repudiada por não ter sido “democrática, livre, justa e transparente” pelos governos do Brasil, Argentina, México, Estados Unidos, Europa e dezenas de outros países – entre eles , são Canadá, Austrália, Chile, Colômbia, Costa Rica, Guatemala, Honduras, Panamá, Paraguai e Peru.
No último sábado, quando Lula enviou o embaixador Celso Amorim a Caracas, completou-se uma década de eleições lideradas por Maduro sob constantes suspeitas de fraude. As evidências do rápido colapso da ditadura venezuelana são múltiplas e surpreendem até antigos aliados da cleptocracia chavista.
Maduro atua como administrador de um condomínio de poder fragmentado em palácios e quartéis e desgastado nas ruas. Um dos mais antigos dirigentes chavistas, Diosdado Cabello, militar reformado e vice-presidente do partido no poder (PSUV), luta por participações no governo com os irmãos Jorge e Delcy Rodríguez. Ele é presidente da Assembleia Nacional e liderou a campanha de Maduro. Ela é vice-presidente do país, ex-chanceler e ex-ministra da Economia. Eles convergem na sua ambição de suceder a Maduro.
Juntos, eles controlam o Legislativo, o Judiciário, o Ministério Público e o Conselho Eleitoral —dependentes da empresa privada Ex-Cle Biometric Solutions, que opera um sistema de votação com máquinas e softwares chineses, importados via Irã e com faturas pagas na Rússia sistema financeiro.
Há quatro anos, o Departamento do Tesouro dos EUA congelou os activos desta empresa por “fraude” na reeleição de Maduro. Entre seus principais dirigentes está um empresário argentino, Guillermo Carlos San Agustín, ligado a dois venezuelanos ligados ao regime, os consultores Marcos Javier Machado Requena e Carlos Enrique Quintero, militar e ex-chefe do Conselho Eleitoral Chavista.
No domingo, Maduro declarou-se vencedor das eleições com 51% dos votos. A oposição contesta, dizendo que venceu com 63%. O Conselho Eleitoral Chavista anunciou que contabilizou 80% das urnas —e nada mais disse, além de confirmar a reeleição. Um conjunto de irregularidades contaminou mais uma vez o processo eleitoral venezuelano.
Com uma evidente erosão no apoio interno e externo, Maduro decidiu romper relações com Argentina, Chile, Costa Rica, Equador, Guatemala, Panamá, Paraguai, Peru, Uruguai e República Dominicana.
Tendo levado a crise para o seu gabinete, Lula se viu na vanguarda de um cenário de fragmentação continental sob ameaça de emergir como o principal garantidor da continuidade da cleptocracia e com um histórico de alergia à oposição venezuelana — demorou um mês para expressar publicamente seu desacordo. com o veto à candidatura de María Corina Machado e rejeitou todas as suas tentativas de contato.
O embaixador Amorim permaneceu limitado a conversas com uma fração de opositores, incluindo o ex-deputado Gerardo Blyde, que inclusive o acompanhou em reuniões com Maduro. Blyde é sócio do escritório de advocacia do empresário José Simón Elarba, do segmento de coleta de lixo, que é reconhecido em Caracas pela proximidade com Cilia Flores, esposa de Maduro.
Seus principais negócios estão focados no suporte de consultoria para empresas chinesas de telecomunicações, como China National Electronic Import & Export Corporation e ZTE Corporation, disse o repórter Marcos David Valverde na revista eletrônica Armando.info. A China foi um dos poucos países, juntamente com a Rússia, Cuba e Nicarágua, a reconhecer a “vitória” de Maduro.
Há sinais de cansaço do governo Lula com a cleptocracia venezuelana. É possível entender como indicação a exigência, em comunicado do Itamaraty, de divulgação detalhada dos boletins de voto. Mas, entre Brasília e Caracas, ninguém aposta um bolívar que isso vai acontecer ou que vai mudar alguma coisa.
O que foi feito desde a noite de domingo, tal como nas eleições anteriores, assemelha-se a um jogo de paciência, à espera de um resultado imprevisível. O custo da crise que Lula trouxe ao Planalto, porém, já superou as expectativas do próprio governo.
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