O ministro Haddad reagiu bem à enxurrada de memes sobre o “taxad” e aumento de impostos. Ele ficou em silêncio e tocou seu trabalho. Não há jeito com humor. É assim que tem que ser feito. E arrisco: é assim que o poder deveria funcionar. O ridículo total foi causado por uma parte da mídia que era mais pró-governo do que o próprio governo. O “tinha que ser proibido”, o papo de “é para profissional” e frases do tipo. Por um momento até me peguei pensando: como iriam proibir memes na internet? Você poderia ingressar no Fake News PL. Quem sabe igualar memes com notícias falsas ou “ameaças à democracia”. Ou algo nesse sentido. Não funcionaria. Logo apareceria alguém com aquela pergunta chata: mas só memes contra o governo? Ele esquece. Chance zero de isso funcionar.
De minha parte, achei interessante a onda de memes. Não chega nem perto da qualidade das caricaturas e ilustrações que Angelo Agostini fez satirizando nosso bom imperador, mas de alguma forma funciona. Quem não entende esse aspecto anárquico e um tanto grosseiro das redes não entendeu nada da democracia atual. Dito isto, as reações são impressionantes. De um comentarista ouvi que tudo não passou de um “ataque da direita”. Por outro lado, que se tratou de uma “ação preventiva de grupos privilegiados (da Faria Lima, claro) com medo da reforma do Imposto de Renda”. Tentei imaginar o grupo bacana da Faria Lima dizendo “vai ter reforma do IR ano que vem, vamos fazer uns memes para acertar as coisas”. Ótima explicação. A crítica mais brilhante que li dizia que a sátira “traduziu a cultura neoliberal” de que é “ruim pagar impostos”.
Achei isso curioso. O Brasil é um país com uma cultura patrimonial. Há mais pessoas contra (45%) do que a favor (38%) dos processos de privatização aqui. Os partidos pró-mercado livre nunca tiveram muito sucesso eleitoral e nada indica que tenhamos algo parecido com uma “cultura neoliberal”. O melhor é cair na real: não há nada de muito profissional na sátira à mania de arrecadação de fundos do governo, muito menos qualquer tipo de conspiração. Havia um “flash mob digital”. Uma onda causada pelo simples fato de o governo, desde que assumiu o cargo, não ter parado de inventar formas de aumentar a arrecadação. Ponto. A lista é longa e conhecida. Tributação de combustíveis, nova regra de tributação de incentivos de ICMS, mudança no a regra do Carf, a tributação das apostas esportivas, os fundos exclusivos, as compras internacionais e o parcelamento de créditos tributários, entre muitas invenções. Em algum momento, houve um esgotamento dessa estratégia. ‘As folhas de pagamento e a volta de uma MP que restringe a compensação dos créditos do PIS e da Cofins Muitas dessas medidas são justificáveis. Outras, nem tanto. No conjunto da obra, o que emerge é a imagem de um país burocrático e pouco original.
Há poucos dias li um artigo de um especialista em impostos dizendo que ninguém gostava de pagar impostos. Discordo. O que ninguém gosta é de fazer papel de bobo. Isso acontece em três situações: quando o imposto é alto, quando ele paga e outros não (ou pagam muito menos) e quando o dinheiro que ele paga tem pouco retorno. O Brasil é uma mistura dessas três coisas. A começar pelo tamanho da carga tributária, 33%, a mais alta do continente. Só isso já seria motivo para coisas muito menos engraçadas que os memes. Mas não para por aí. Poderíamos ter uma carga alta com um ótimo retorno. Não é o caso. Pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação mostrou que temos o pior desempenho em termos de desenvolvimento humano entre trinta das economias que mais tributam, globalmente. A nossa taxa de investimento é fraca e a nossa educação pública tem resultados no mínimo de Pisa, a cada três anos. O problema torna-se mais complicado quando ampliamos e vemos para onde vai o dinheiro público. Por que um país endividado e deficitário como o Brasil tem o Legislativo mais caro do planeta, com um custo de 528 vezes a renda média da população? E por que somos o país que mais contribui com dinheiro dos contribuintes para financiar partidos políticos e candidatos? Sejamos honestos: dinheiro não é problema nosso. O CLP fez pesquisa mostrando que há mais de 20 mil empregados ganhando acima do teto no país. Perto de 93% dos nossos juízes estão nesta situação. É claro que não é fácil lidar com isso. Durante viagem ao Congresso, a ministra Simone Tebet disse que é “mais fácil aumentar receita do que cortar gastos”. É um bom resumo do nosso problema. Só um detalhe: nossos líderes são pagos para fazer o que é difícil e não o que é fácil. Há uma PEC no Congresso, a chamada “PEC dos penduricalhos”, cujo foco é exatamente cortar privilégios e impor o teto aos servidores. Por que isso não está acontecendo? Porque é difícil? É fácil aprovar o projeto para quem tem menos poder de lobby em Brasília?
“Não houve conspiração. Havia um flash mob digital”
As reformas são difíceis devido a um dilema político há muito conhecido. Foi formulado por Maquiavel, em O príncipe. A sua lógica é bastante clara: as reformas são difíceis porque todos os que perderem, com a nova ordem, tornar-se-ão inimigos ferrenhos do reformador. E todos aqueles que ganham, em regra de forma difusa e ao longo do tempo, dar-lhe-ão, no máximo, um apoio muito moderado. Não sei se Tebet leu Maquiavel, mas foi o que ela acabou dizendo. A lógica de Maquiavel permanece intacta. Uma reforma administrativa que cortaria privilégios, como licenças-prêmio, auxílio-moradia para quem não precisa, férias de dois meses, 25 assessores por deputado, jatos para ir e vir nos finais de semana e colocar para trabalhar a avaliação dos servidores , conforme mandatado, a Constituição atenderia a todos os requisitos de Maquiavel: seria ótimo para o país. Ótimo para cidadãos que pagam impostos. Mas seria terrível para quem tem todas essas vantagens. Se o governo colocasse algo assim em votação no Congresso, quem encheria as galerias e trabalharia no lobby: o cidadão, quem pagará menos e terá um serviço melhor? Ou a corporação, que terá que caber no teto e perder suas bugigangas?
É por essas coisas que sempre escrevo minha admiração por aqueles que empreenderam reformas realmente importantes na história recente do Brasil. Quem desenhou a reforma do Estado, na década de 90, que fez a reforma trabalhista, em 2017, a reforma da Previdência, em 2019, e conquistou a autonomia do Banco Central, há três anos. Essas pessoas mostraram que o Brasil não é apenas um país condenado a fazer apenas o que é fácil. E é basicamente disso que tratam os memes. E é por isso que eles não deveriam ser banidos. Eles são apenas parte do jogo da democracia. Não creio que o governo mude de rumo por causa disso. Mas muitas pessoas, incluindo o próprio governo, podem perceber que não mudar poderá sair muito caro no futuro.
Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper
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Publicado em VEJA em 26 de julho de 2024, edição nº 2.903
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