Desde 2016, o Tribunal de Contas da União (TCU) entende que as doações recebidas pelos presidentes durante seus mandatos são bens da União, salvo itens de “caráter personalíssimo”. Após o indiciamento do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) pelo caso das joias, no dia 4 de julho de 2024, usuários nas redes sociais voltaram a compartilhar que a Portaria nº 59, de 2018, definia joias como bens de “caráter muito pessoal”. Mas, segundo especialistas, essa norma — revogada em 2021 — não isentaria Bolsonaro de eventual responsabilidade no caso, já que a regulamentação do tema é de responsabilidade exclusiva do TCU.
“GOLPE DE JÓIAS: 1. PR Bolsonaro recebeu PRESENTES catalogados como PESSOAL 2. Bolsonaro não usa itens de luxo e DOA para a equipe 3. A equipe decide vender o PESSOAL 4. O TCU/STF/PT ‘muda a regra do que é um presente pessoal 5. A equipe recompra os itens e entrega ao Sindicato”, diz a legenda de uma postagem que circula no X, Facebook, Instagram e TikTok.
A imagem que acompanha as publicações já havia sido compartilhada, em 2023, por aliados de Jair Bolsonaro, incluindo a deputada federal Carla Zambelli (PL-SP) e o vereador carioca Carlos Bolsonaro (PL), filho do ex-presidente.
O conteúdo voltou às redes após Jair Bolsonaro ser indiciado, em 4 de julho de 2024, pela PF no caso envolvendo joias doadas por autoridades estrangeiras ao ex-presidente durante seu mandato. A suspeita, segundo a PF, é de que o ex-agente tenha participado de um esquema ilegal para vender itens de alto valor e, assim, incorporá-los ao seu patrimônio pessoal.
Nesse contexto, a imagem e a legenda das publicações virais argumentam que não há irregularidade no caso, uma vez que, supostamente, joias e semijoias foram definidas como “bens de caráter personalíssimo” pela Portaria nº 59, de 8 de novembro. , 2018.
Conforme informa o conteúdo viral, essa regra foi revogada pela Portaria nº 124, de 17 de novembro de 2021.
Ainda segundo as publicações, o Tribunal de Contas da União mudaria então, em 15 de março de 2023, a definição do que considera bens de caráter personalíssimo e ordenaria que Bolsonaro devolvesse as joias recebidas, conforme registrado no processo TC 003.679/ 2023-3.
Segundo especialistas ouvidos pela AFP, porém, essa interpretação de que o TCU estaria decidindo “retroativamente” não é sustentável, uma vez que o atual entendimento do Tribunal sobre o tema foi estabelecido em 2016 pelo Tribunal — antes, portanto, da Portaria nº 59/2018 e a gestão Bolsonaro (2019-2022). E, embora a decisão do TCU de 2016 não explicite o que é considerado um bem de natureza personalíssima, uma portaria não teria força jurídica para se sobrepor ao entendimento do Tribunal sobre o tema.
O TCU mudou as regras relativas aos presentes recebidos pelos presidentes?
As publicações e suas respectivas legendas dão a entender que, ao ordenar que Bolsonaro devolvesse as joias que recebeu enquanto era presidente do país, o TCU teria alterado a definição anteriormente existente do que seria um item de natureza muito pessoal.
Isso não é verdade. O entendimento utilizado pelo Tribunal é o mesmo desde 2016, quando foi publicado o Acórdão 2.255/2016.
Até esta decisão, os presentes recebidos pelos presidentes da República eram regidos, sobretudo, pelo Decreto nº 4.344/2002 — que, por sua vez, era uma regulamentação da legislação originária sobre o tema, a Lei 8.394/1991.
A questão, à época, girava em torno do inciso II do artigo 3º do decreto nº. 4.344/2002, que permitiu a interpretação de que apenas”documentos bibliográficos e museológicos recebidos em cerimônias de troca de presentes, em audiências com chefes de Estado e de Governo por ocasião de ‘Visitas Oficiais’ ou ‘Viagens de Estado’ ao exterior do Presidente da República” ser activos da União. Ou seja, de acordo com esta interpretação do decreto, os bens recebidos fora das cerimônias de “troca de presentes” poderiam ser considerados parte do acervo pessoal do chefe de Estado, conforme entendimento até então vigente.
Foi esse ponto que a decisão do TCU, em 2016, considerou um “erro de interpretação”.
Com a publicação da Portaria 2.255/2016 o TCU estabeleceu o entendimento de que não apenas os itens recebidos pelo chefe de Estado em cerimônias de troca de presentes devem ser incorporados ao patrimônio da União mas também”todos os presentes recebidos em audiências com chefes de Estado e Governo, por ocasião de visitas oficiais ou viagens de Estado ao exterior”. A única exceção são “artigos de caráter muito pessoal ou de consumo direto” do presidente.
Embora esta decisão não defina explicitamente o que seriam itens de natureza muito pessoal, nesta mesma decisão, o ministro do TCU, Walton Alencar Rodrigues, afirma que não seria “razoável” permitir que presentes valiosos dados por outros chefes de estado ao presidente da República O Brasil será incorporado ao patrimônio privado de agente que o recebeu no exercício do cargo:
“Imaginem, aliás, a situação de um Chefe de Governo presenteando o Presidente da República do Brasil com uma grande esmeralda de valor inestimável, ou um quadro valioso. Não é razoável afirmar que, com base no título da cerimônia , os presentes, valiosos ou não, poderão ser incorporados ao patrimônio privado do Presidente da República, desde que este os receba nesta qualidade pública”.
“Antecipadamente, a própria decisão[de 2016]do Tribunal de Contas estabelece que não seria razoável presumir que as joias sejam propriedade privada do Presidente”, resumiu Daniel Capecchi, professor de Direito Constitucional e Administrativo da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), à AFP Checamos.
De forma semelhante, Mateus Silveira, especialista em Direito Constitucional e professor da Faculdade Dom Alberto, avalia que a decisão do Tribunal de Contas de ordenar a devolução das joias por Bolsonaro não constitui diretamente”uma mudança de entendimento, mas sim uma interpretação da legislação existente na época pelo Tribunal”.
Em 2023, quando o TCU julgou que Bolsonaro deveria devolver os itens, o ministro Bruno Dantas, presidente do Tribunal, destacou:
“Segundo a jurisprudência deste Tribunal de Contas desde 2016, para que uma doação seja incorporada ao patrimônio pessoal da autoridade é necessário atender a um binômio: uso muito pessoal, como uma camisa de futebol, e um valor monetário baixo”, afirmou o magistrado.
Se válida, a Portaria 59/2018 poderia prevalecer sobre o TCU?
Segundo os especialistas consultados, não.
“Por força da Lei 8.443/92 e da própria Constituição Federal, cabe ao TCU exercer a fiscalização externa do Poder Executivo. No caso em análise, (…) não faz sentido que ato originário do próprio Executivo[no caso, a Portaria nº 59/2018]se sobrepõe ao entendimento do seu órgão fiscalizador”, avaliou Capecchi.
O advogado Gustavo Justino de Oliveira, professor de Direito Administrativo da Universidade de São Paulo (USP) e do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), fez avaliação semelhante:”A matéria é regulamentada a priori pelo Decreto 4.344/2002 , com interpretação dada pelo TCU em 2016. A edição de portaria não poderá prevalecer sobre o referido decreto”.
O professor destacou ainda que, mesmo que as joias e semijoias fossem consideradas pelo TCU como itens de caráter muito pessoal, “elas deveriam primeiro ser oferecidas à União para aquisição e nunca serem vendidas no exterior, como é conhecido”.
Esse procedimento está previsto no Decreto nº 4.344/2002, que regulamenta o tema:
“Art. 10. A venda de acervos documentais particulares dos Presidentes da República deverá ser precedida de comunicação escrita à Comissão de Memória dos Presidentes da República, que se manifestará, no prazo máximo de sessenta dias, sobre a União interesse em adquirir essas coleções.”
Após determinação do TCU de 2023, Bolsonaro entregou joias e armas que estavam em seu acervo pessoal à Caixa Econômica Federal.
Referências:
Portaria nº 59, de 8 de novembro de 2018
Portaria nº 124, de 17 de novembro de 2021
Determinação do TCU de 15 de março de 2023 sobre a devolução de joias por Bolsonaro
Acórdão TCU 2.255/2016
Decreto nº 4.344/2002
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