Jornalista portuguesa expõe passado da família para debater época da escravatura

Jornalista portuguesa expõe passado da família para debater época da escravatura



No Dia Internacional em Memória do Tráfico de Escravos e da sua Abolição, assinalado neste dia 23 de agosto, a ONU News falou com a jornalista portuguesa Catarina Demony. Ela contou a história da família que estava ligada ao tráfico de escravos em Angola.

No mais recente relatório sobre os efeitos de séculos de escravatura, o secretário-geral, António Guterres, apelou “à tomada de medidas de reparação, para ajudar a superar gerações de exclusão e discriminação”.

Vida confortável e privilegiada

Catarina Demony sempre se questionou sobre a origem do dinheiro que lhe permitiu uma vida confortável e privilegiada, mas essa resposta só lhe chegou aos 18 anos e foi revelada à ONU News.

“Foi a minha avó, por parte de mãe, quem me contou sobre o envolvimento dos meus antepassados ​​no comércio transatlântico de escravos.”

Os Matoso de Andrade e Câmara, ancestrais de Catarina Demony, foram um dos maiores comerciantes de escravos em Angola, nos séculos XVIII e XIX. A família chegou a Angola no início do século XVIII, criou ligações com os governadores locais, começando a envolver-se. em feiras onde eram comprados escravos.

Esta empresa familiar, que durou até cerca de 1840, permitiu a construção de um vasto património que foi transmitido de geração em geração.

Privilégios inacessíveis à maioria

“O dinheiro que foi ganho com o tráfico transatlântico não está na conta bancária, nem na minha, nem nos meus pais, nem na minha avó.”

A jornalista explica que esta herança permitiu-lhe privilégios inacessíveis à maioria.

“O estatuto social que o dinheiro permitiu à minha família obter, abriu portas, criou acesso a espaços mais privilegiados, a empregos, e portanto a empregos, e que de forma indirecta me deu privilégios. E acho que é muito importante admitir isso.”

Pegando a história “Debaixo do tapete”

Ao longo dos últimos anos, Catarina Demony formou-se jornalista, estudou escravatura e colonialismo e decidiu que era importante desenterrar este passado. É assim que surge o documentário “Debaixo do Tapete”, realizado e dirigido pelo jornalista Carlos A. Costa, lançado em Portugal e Angola.

O jornalista explicou que o objetivo do documentário era chegar a testemunhos semelhantes e debater o passado esclavagista português. Nesta viagem ao passado, o documentário conta com testemunhos de especialistas e activistas da luta anti-racista em Portugal.

Não foi fácil encontrar em Portugal outras pessoas preparadas para falar deste passado, embora Catarina Demony saiba que a sua família está longe de ter uma história única no país. O músico português Francisco Sousa se apresentou e revelou no documentário que seu tataravô era dono de escravos na fazenda São Nicolau, na ilha de São Tomé.

Noutros países, como o Reino Unido, a França, os Estados Unidos e o Brasil, começam a enfrentar a sua história de escravatura e a discutir como as suas economias lucraram com o tráfico de pessoas escravizadas, um capítulo muitas vezes esquecido nos manuais escolares.

Reparar o irreparável

Catarina Demony acredita que mais famílias sentirão a responsabilidade de trazer esta história a público e defende que cabe a cada um perceber como pode contribuir para ajudar a reparar este passado.

“Considero que este passado é de tanta violência, de tal dimensão e complexidade e magnitude que é um passado irreparável mas há formas de combater as desigualdades que este passado criou.”

O tema das reparações históricas e culturais tem ganhado força em vários países e também nas Nações Unidas.

Um relatório do Secretário-Geral da ONU, publicado em 2023, revelou que nenhum país levou em conta o passado e abordou o legado contemporâneo da remoção violenta de cerca de 25 milhões a 30 milhões de pessoas de África ao longo de mais de 400 anos.

Escravos de origem africana

Em Março de 2023, António Guterres apelou “à tomada de medidas de reparação, para ajudar a superar gerações de exclusão e discriminação. Apelamos para que sejam dados o espaço e as condições necessárias para a cura, reparação e justiça”.

O Dia Internacional em Memória do Tráfico de Escravos e sua Abolição foi proclamado pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, UNESCO, para relembrar os acontecimentos da noite de 22 para 23 de agosto de 1791.

Vários escravos de origem africana revoltaram-se contra o sistema escravista na então ilha de São Domingos, hoje Haiti, em busca de liberdade e independência. Após a revolta, seguiram-se acontecimentos que levaram à abolição do comércio de escravos.

Em 1997, a UNESCO instituiu a homenagem para destacar o papel daqueles que lutaram pela liberdade e para continuar a promover a sua história e valores.

*Sara de Melo Rocha é correspondente da ONU News em Lisboa.



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