O Censo 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) identificou a existência de 8.441 localidades quilombolas no Brasil. Destes, 1.228 estão no Norte do país, sendo a comunidade Menino Jesus de Pitimandeua, em Inhangapi, Nordeste do Pará, a responsável pela criação de Alison Felipe Natividade, zagueiro que disputa o Campeonato Mineiro pelo Itabirito e busca crescer na carreira para ajudar mais ativamente o lugar onde nasceu.
As comunidades quilombolas, presentes no Brasil há mais de 400 anos, surgiram durante o período da escravidão como locais de refúgio para pessoas escravizadas – de difícil acesso, tais espaços representavam um sopro de liberdade para aqueles que viviam em condições desumanas. Mesmo após a abolição, os quilombos continuaram sendo símbolos de resistência e berço de famílias que vivem em convivência, como se fossem todas uma só. É o que Alison explica em entrevista exclusiva ao No ataque.
“É como se todos fossem uma família. É uma comunidade muito pequena, muito pequena mesmo. Então todo mundo se conhece, alguém está sempre ligado a outro. São pessoas muito simples e humildes. Alguns vivem da terra, como plantação de mandioca, açaí (…) Tem escola, posto de saúde, é o básico, só isso”, começou o zagueiro de 26 anos.
Foi na comunidade simples, que abriga aproximadamente 55 famílias, que o zagueiro teve seu primeiro contato com o futebol. Na época, o local ainda não havia recebido o título de remanescente de arte da Fundação Cultural Palmares. quilombo – o que só ocorreu em 2023. Esse reconhecimento garante à comunidade o acesso a políticas públicas e assistência técnica e jurídica, além do reconhecimento legal da propriedade do território.
A primeira escolinha de futebol da qual Alison fez parte fica em Castanhal, a cerca de 18 quilômetros de onde o jogador morava. Naquele momento, a principal dificuldade estava relacionada ao acesso ao local de treinamento.
“A partir dos 10 anos comecei a jogar futebol com meus amigos e primos. Aí comecei a sentir o gosto. Comecei a treinar na escolinha de futebol Castelo dos Sonhos, fica em outra cidade, porque sou do interior. Fica a 30 minutos de onde eu morava. Tive um pouco de dificuldade para chegar ao treino. Minha família não é uma família que tem muitas condições, mas graças a Deus hoje pude ajudá-los. No começo foi muito difícil, às vezes eu treinava caminhando.”
Alison Felipe, zagueira do Itabirito
“Do Castelo dos Sonhos fui para um clube chamado Castanhal Esporte Clube, que é um clube profissional, pelo qual me tornei profissional (em 2018)”, continuou.
Em uma comunidade nascida de uma história de dor e sofrimento, Alison conseguiu quebrar barreiras e dar vida aos sonhos de alguns de seus colegas. Mesmo ainda não tendo atingido o mais alto nível do futebol, o jogador já é exemplo no Quilombo do Menino Jesus de Pitimandeua.
“Me tornei referência lá, graças a Deus. São pessoas unidas, que torcem umas pelas outras. Sempre que vou lá de férias, faço jogos beneficentes, me encontro com a torcida”, reconhece o zagueiro.
Título de Amazonas
Alison permaneceu no Castanhal até 2021, tendo sido emprestado a algumas equipes nesse período. Em 2022, alcançou o Amazôniaum clube que pretende colocar a Região Norte no mapa do futebol nacional.
Fundada em 2019, a Onça Pintada conseguiu um grande feito em 2023, ao conquistar a Série C do Campeonato Brasileiro. Alison fazia parte dessa equipe.
“É um sentimento de muita alegria. É uma região onde o futebol não é tão valorizado como deveria. Lá existem competições de alto nível, jogadores de alta qualidade. Cheguei no Amazonas no começo de tudo, na Série D. O clube quase não teve proporção e evoluímos etapa a etapa. Fomos para a Série C, depois para a Série B, ainda com o título”, pontua.
Alison foi à comunidade poucos dias depois de levantar o troféu com o Amazonas. Campeão nacional, o defensor foi surpreendido pela recepção de familiares e amigos.
“Fui à comunidade cerca de cinco dias depois do título. Eu estava normal, quando cheguei lá começaram a soltar fogos, quando cheguei já estavam fazendo uma festa surpresa para mim. Fiquei muito emocionado e realizado ao ver minha comunidade muito orgulhosa de mim.”
Alisson Felipe
Na terra de Dário Alegria
Em 2025, Alison chega a Minas Gerais, estado onde nasceu Jurandir Dario Gouveia Damasceno, conhecido como Dario Alegria, um dos principais jogadores de origem quilombola da história do futebol nacional.
Em sua carreira, Dario, que jogou pelo América e o Palmeiras, além da seleção brasileira, teve que lidar com casos graves de racismo, como a vez em que foi chamado de ‘vagabundo negro’ por um árbitro durante uma partida da seleção paulista – história que contou ao dirigente Revista Verdão em 2021, pouco antes de falecer, aos 77 anos, por complicações causadas por um acidente vascular cerebral.
Nascido no quilombo Buriti dos Costa, em Paracatu, noroeste de Minas Gerais, Dario Alegria virou história do livro “O Leopardo das Alterosas”, escrito pelo jornalista Aroldo Dayrell. Fora de campo, ele se dedicou a ajudar quem tem formação semelhante à sua.
O ex-grevista criou a Fundação Fala Negra que, em parceria com a Fundação Palmares, mapeou e validou 83 quilombos que existem ou já existiram em Minas Gerais. Iniciativas como a de Dario motivam Alison Felipe, que estabelece metas para ser “ouvida de uma forma diferente”.
“Passa pela minha cabeça, mas acho que o que mais falta é apoio. Espero chegar a um futebol de alto nível para poder trabalhar as situações. Assim é muito mais fácil, mais tranquilo. Você passa a ser ouvido de uma forma diferente”, destaca.
Jogadores quilombolas no cenário nacional
O número de jogadores de origem quilombola em destaque no futebol nacional ainda é baixo. Um deles é o atacante Igor Paixãocujos avós faziam parte da comunidade Curiaú, em Macapá, Amapá. Depois de surgir com grande expectativa no Coritiba, hoje o jogador de 24 anos brilha no Feyenoord, da Holanda.
Outro é o meio-campista Sidney, do Bahia. Mesmo que os holofotes estejam menos voltados para Paixão, o jovem criado em uma comunidade quilombola na Iha da Maré, em Salvador, parece ter um futuro brilhante pela frente. Aos 18 anos, foi convocado para as categorias de base do Brasil e, nesta temporada, disputou três partidas como titular pelo Esquadrão de Aço no Campeonato Baiano.
“Nestas comunidades existem jogadores de alta qualidade que precisam ser vistos, mas muitas vezes não têm todas as oportunidades. A oportunidade de que falo é uma boa condição para fazer um teste num clube, por exemplo. Acho que deveriam olhar mais para as comunidades quilombolas, porque há crianças com muito potencial”, argumenta Alison Felipe.
Campeonato Mineiro de Itabirito
Após três temporadas no Amazonas, Alison embarcou em uma aventura no Itabirito, outro clube que tem projeto de expansão a nível estadual e nacional. No Gato do Mato, ele jogará ao lado nomes conhecidos no futebol brasileiro, como os atacantes Jô e Luan.
“É um clube com muita ambição, que tem gente vencedora no futebol brasileiro. O elenco me atraiu, a ambição do diretor e do presidente me atraiu.”
Alison Felipe, zagueira
Alison pode estrear nesta quarta-feira
Alison não participou do primeiro jogo do Itabirito no Estadual: Derrota por 1-0 para Betim, neste sábado (18/1). O zagueiro terá a chance de estrear nesta quarta-feira (22), quando o time visita o Tombense, no Almeidão, a partir das 19h, pela segunda rodada do Campeonato Mineiro.
“As expectativas são as melhores possíveis após 45 dias de pré-temporada. Trabalhamos intensamente, muito mesmo. A comissão técnica é de muita qualidade, acredito que faremos um bom Campeonato Mineiro”, finalizou o zagueiro.
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